ONG de skate vencedora de Oscar fecha no Afeganistão e equipe foge; ajude
Quando o Talibã tomou as ruas do Afeganistão em agosto, um grupo particular de crianças enfrentaram uma nova incerteza em uma sociedade incerta há décadas. Elas andam de skate. Desde 2007, meninos e meninas afegãs com até 17 anos praticam o esporte graças à Skateistan, uma ONG que ensina e usa o skate como uma ferramenta de transformação social. Agora, porém, não se sabe quando poderão se divertir novamente.
Em 2011, a história da Skateistan ganhou um Oscar na categoria de melhor documentário em curta-metragem. O projeto é sustentado por doações e, com o sucesso internacional, pôde abrir três escolas: uma na capital, Cabul, e mais duas nas cidades de Bamiyan e Mazar i Sharif. As aulas foram canceladas pela primeira em vez em 14 anos quando o Talibã assumiu o controle do país após a retirada dos soldados americanos.
As imagens do Afeganistão eram bem diferentes das filmagens premiadas. Afegãos desesperados morreram após caírem de aeronaves norte-americanas, um drone dos Estados Unidos matou dez pessoas inocentes em Cabul (os militares norte-americanos não foram responsabilizados pelo governo dos EUA) e havia medo do Talibã retomar imediatamente as execuções públicas de aliados de estrangeiros, mulheres, e amputar as mãos suspeitos de roubos, como nos anos 1990, quando esteve no controle do país.
Um dia antes de o Talibã retomar o poder, a Skateistan publicou um vídeo para ensinar uma manobra de skate nas redes sociais. Nos comentários, uma pessoa perguntou: "Vocês estão bem?".
Skate para mulheres
O skate é especialmente importante para as meninas afegãs, impedidas de praticar esporte na década de 90. Durante os anos 2000, nem todo mundo gostava de ver mulheres nas universidades, na política ou em cima de um skate, mas sem o Talibã não havia impeditivos.
Masoma* começou como aluna, se tornou instrutora na Skateistan e viu a história de um país nas histórias de cada aluno. "Alguns estudantes eram de campos de refugiados. Outros trabalhavam na rua, mas também tínhamos crianças de famílias ricas e pobres", diz em entrevista a Ecoa. Por motivos de segurança, o nome real da instrutora será preservado.
O Talibã é um grupo fundamentalista que controlou o Afeganistão entre 1996 e 2001, quando foram retirados do poder por uma coalizão militar liderada pelos Estados Unidos. No início dos anos 2000, os norte-americanos justificaram que o Talibã acobertou as ações de Osama Bin-Laden, do grupo extremista Al-Qaeda, responsabilizado pelo ataque às Torres Gêmeas. Apesar disso, os americanos tinham interesse em dominar a região há décadas.
Entre os anos 70 e 80, a União Soviética invadiu o Afeganistão e os norte-americanos financiaram grupos armados para desestabilizar a sociedade afegã e os soviéticos durante a Guerra Fria. Em 79, os "guerreiros da liberdade" foram recebidos na Casa Branca pelo então presidente norte-americano Ronald Reagan.
Naquela época, o Talibã surgiu no Paquistão. O grupo fundamentalista pratica uma versão extremista da lei islâmica e ganhou apoiadores com a promessa de levar paz e segurança para uma região com guerras ininterruptas por décadas.
Os fundamentalistas derrubaram o governo do presidente afegão Burhanuddin Rabbani e iniciaram execuções públicas, proibiram o cinema, a música, a televisão e baniram meninas com mais de 10 anos das escolas. (No vizinho Paquistão, a Nobel da Paz Malala foi baleada por um extremista do Talibã por defender o estudo para mulheres).
Com a invasão dos Estados Unidos, as afegãs retomaram os estudos e foram eleitas para cargos públicos. Aos 17, Masoma pôde aprender a como andar de skate. "Eu me sinto um pássaro livre quando ando de skate (...) É muito bom ensinar skate para outras garotas", se orgulha a professora. "É muito difícil deixar meu país", diz.
O início
O Skateistan foi criado por Oliver Percovich em 2007, em Cabul. Com o sucesso, ele inaugurou unidades na Jordânia, país onde há milhares de refugiados de conflitos no Oriente Médio, na África do Sul e Camboja, na Ásia. O dinheiro é doado por pessoas, empresas e fundos de caridade em todo o mundo.
Recentemente, o Skateistan inaugurou uma unidade em La Paz, na Bolívia. Os planos do diretor-executivo são ambiciosos. Mesmo suspensos no Afeganistão, ele pretende inaugurar 22 unidades e atender a mais de 5 mil crianças por dia até o final de 2022 em todo o mundo. Uma unidade no Brasil não está fora dos planos.
Percovich não tinha planos para ir tão longe quando visitou Cabul pela primeira vez, no início dos anos 2000. Era mais um turista curioso em conhecer uma região que não saía do noticiário, quase nunca como fonte de boas notícias. Nascido em Papua Nova Guiné, ele havia trabalhado para programas sociais do governo da Austrália e levou o skate para conhecer o novo país.
O "shape" (a prancha) com rodinhas não era popular entre afegãos, mas as crianças pediam para dar uma volta e quis ensiná-las.
A ONG funciona como uma escola. Os alunos estudam e recebem reforço para se dedicar às disciplinas obrigatórias de cada país, há oficinas para estimular a criatividade artística e social, espaços reservados e silenciosos para estudar e o envolvimento das famílias para evitar o abandono das escolas. E há, claro, um tempo reservado para o skate. A organização não governamental construiu a primeira rampa para skate no Afeganistão. Os instrutores são locais, o que gera emprego em comunidades pobres.
"O skate tem atributos peculiares que o tornam uma ferramenta muito boa para incentivar as crianças. É um esporte muito criativo, onde não há maneira certa ou errada de fazer alguma coisa, o que encoraja as crianças a buscar as próprias soluções", diz Percovich para Ecoa. Atualmente, ele coordena a ONG em Berlim, na Alemanha.
Altos e baixos
Os últimos dois anos foram de altos e baixos para a organização de Percovich. Durante a pandemia, foi preciso adaptar um ensino remoto para milhares de alunos. Por outro lado, o skate estreou nos Jogos Olímpicos, em Tóquio. As imagens de skatistas felizes pela vitória de um adversário causaram curiosidade e admiração.
"As Olimpíadas foram uma demonstração perfeita do skate: um grupo acolhedor onde incentivamos e celebramos o êxito uns dos outros. Para mim, skate é uma rede de apoio internacional. Onde vou, eu encontro novos amigos", acrescenta. Cerca de um mês depois da skatista brasileira Rayssa Leal conquistar a medalha de prata, vieram as más notícias que levaram ao fechamento da Skateistan original.
Após duas décadas de uma ação cada vez mais impopular, os norte-americanos negociaram uma saída com o próprio Talibã, que reassumiu o poder com a saída. O então Ministério das Mulheres foi substituído pelo Ministério de Oração e Orientação e Promoção da Virtude e Prevenção do Vício que, no passado, autorizava chicotear mulheres que andassem sozinha na rua. As ONGs lideradas por estrangeiros, como a Skateistan, suspenderam as atividades.
A equipe afegã não sabia para onde ir. "Foi tudo muito rápido", lembra Oliver. "Muitos escolheram fugir do país e nós ajudamos com vistos e ajudá-los a entrar com segurança em um dos aeroportos", diz.
Nos últimos meses, ele pôde contratar uma equipe nova para buscar informações sobre as crianças que ficaram e pensar em uma maneira de retomar a Skateistan em Cabul. É um destino ainda incerto."Mas nós estamos comprometidos com o futuro a longo prazo das crianças", diz Percovich. "Agora, mais do que nunca".
Skateistan
É possível doar qualquer valor. As doações podem ser mensais ou individuais. Basta acessar o site: Skateistan.org/#donate
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