"A negritude constitui o CEP das pessoas", diz pesquisadora
Qual o marcador racial brasileiro? Foi com essa pergunta que Douglas Belchior, integrante da Coalizão Negra Por Direitos, deu início ao terceiro painel de Origens: Passos que Vêm de Longe, promovido por Ecoa na última quarta-feira (17). A provocação não gerou dúvidas na jornalista e pesquisadora Gisele Brito, que considera a questão territorial um fator importante para responder a questão: "A negritude constitui o CEP das pessoas".
Intitulado Nós negros: a identidade racial no Brasil, o painel foi conduzido por Belchior, e também contou com a participação da jornalista e escritora Bianca Santana e da advogada e integrante da UNEafro Beatriz Lourenço do Nascimento.
Mestre pela FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da USP (Universidade de São Paulo), Gisele resgatou o contexto sobre onde a população negra no pré e pós-abolição, entre elas pessoas livres, escravizadas ou as que compraram sua alforria, passaram a viver e conviver. "Esta diversidade gerou uma segregação racial", pontou.
Gisele explicou que neste período, nas cidades, as pessoas negras escravizadas moravam em porões e as pessoas escravizadas de ganho - escravos obrigados pelos seus senhores a realizar algum tipo de trabalho nas ruas - viviam em casas que elas conseguiam alugar com a sua renda.
"Quando essa diversidade de código de cidadania começou a ficar imenso, ele passou a ser um marcador de quem era negro e quem não era. E serviu para os governos usarem de termômetro para decidirem onde investir mais ou menos, controlar as urbanidades e sociabilidades negras com a polícia. Esta separação dos brancos e negros é determinante para organizar a cidade e isso acontece até hoje"
Gisele Brito, mestre em Arquitetura e Urbanismo
Um dos exemplos recentes citados por Gisele de como a cidade separa territorialmente a população negra e branca foi o episódio da morte de nove jovens, em dezembro de 2019, durante uma operação da Polícia Militar em um baile funk na favela de Paraisópolis, uma das maiores da América Latina.
"Um comandante da Polícia Militar disse que a polícia jamais se comportaria em um bairro dos Jardins como se comporta em uma favela de São Paulo. O que aconteceu em Paraisópolis é fruto disso. A cidade é organizada de modo que a violência seja segura, que a polícia e o Estado possam agir de forma violenta, mas segura para eles, cumprindo o seu dever com o genocídio negro", disse.
Ainda usando Paraisópolis como exemplo, Gisele reforçou que quando a polícia chega de forma violenta para impedir um baile funk, isso representa um impedimento das manifestações de urbanidades negras.
"A gente pensa em dividir o orçamento da cidade de maneira que ele acabe com as desigualdades históricas. Mas o pensamento branco colonizado que reflete quem está no poder é de enquadrar todas as formas de vidas em um padrão. E este padrão não é negro. Alguns acham que se as pessoas negras tivessem onde fazer o baile funk, o rolezinho, que elas não estariam fazendo na rua. Será? A rua sempre foi o espaço onde estivemos e ocupamos. Muitas vezes por resistência", disse.
FOTOS: Origens - Nossos Passos Vêm de Longe
Muito além do genocídio
Também questionada sobre o que é ser negro no Brasil, a jornalista Bianca Santana fez menção à explicação que ouviu de Edson Cardoso, diretor do Ìrohín (Centro de Documentação e Memória Afro-brasileira), jornalista e doutor em educação pela USP: "é uma questão de fenótipo. É você olhar no espelho e reconhecer no nariz, tom de pele, cabelo, nos traços, uma negritude".
A jornalista e diretora-executiva da Casa Sueli Carneiro também reforçou que, além de fenótipo, é preciso existir um reconhecimento social, ou seja, ser lido por outras pessoas como uma pessoa negra.
"Negro é esta soma de pessoas que se autodeclaram pardas ou pretas. Então, do mesmo jeito que as pessoas brancas têm um monte de tom de pele e cor de cabelo diferentes, e ninguém acha isso estranho, nós negros também somos múltiplos. Mas há uma confusão, muitas vezes de má-fé, de pessoas que querem se aproveitar das políticas de cota racial. Elas não se reconhecem negras, mas se declaram negras para se beneficiar de algo"
Bianca Santana, jornalista e escritora
A importância de retomar o passado para compreender o presente e vislumbrar um futuro melhor também foi um ponto trazido pela escritora, que remexeu em suas memórias para exemplificar como conhecer o passado permite que negros e negras conheçam mais sobre si e, consequentemente, sobre sua identidade racial. Esta é uma forma, diz ela, que permite ao povo preto ver a potência da negritude e se afaste da ideia de que só pode se reconhecer no genocídio, no extermínio ou no encarceramento.
"Pensar que a população negra brasileira resiste ao genocídio também nos deixa em uma situação muito complicada. A gente quer viver, quer celebrar, quer florescer. Para isso, a gente precisa conectar as nossas raízes em profundidade. Entender o período da escravização, o pós-abolição e o período antes da escravização com toda a riqueza, a cultura e a religião do povo preto", disse.
Advogada e integrante da UNEafro, Beatriz Lourenço do Nascimento, também ressaltou a questão da memória como ponto importante para se pensar sobre a identidade negra no país. Ela também lembrou de como o Estado mudou por diversas vezes a definição institucional do que é ser negro no Brasil, o que caracterizou como "uma bagunça no imaginário da população negra".
Os parâmetros e discussões sobre a identidade negra estabelecidos durante as discussões das cotas raciais foi um dos exemplos trazidos por ela. "Em 2012, o Superior Tribunal Federal discutia a questão das cotas e as pessoas questionavam como iam definir quem é negro no Brasil, por conta da miscigenação. Hoje, em 2021, a gente luta para afastar as pessoas que decidiram no último período serem negras no Brasil. Você divide a maior parte da população a partir do racismo, que é o que organiza todas as relações da sociedade brasileira, mas sem dizer que é o racismo que mobiliza isso", disse.
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