Pimp My Carroça: 'Brasil precisa dos catadores para conseguir reduzir CO2'
O Brasil perde R$ 14 bilhões por ano com a falta de reciclagem adequada de resíduos. Em 2020, foram cerca de 12 milhões de toneladas de material descartado no meio ambiente, segundo dados da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais), que poderiam ter gerado emprego e renda para quem precisa.
Além da falta de reciclagem, o país também não avança na questão dos lixões. Mais de 30 milhões de toneladas de resíduos sólidos são despejadas em quase 3 mil aterros — um número que se manteve praticamente estável na última década, apesar de a Política Nacional de Resíduos Sólidos determinar a desativação desses locais e obrigar as empresas a investirem em logística reversa.
Diante de um cenário de crise econômica e ambiental, tem gente por aqui trabalhando para impactar a sociedade civil e conectar parte de um ecossistema de maneira diferente. É o caso do Pimp My Carroça, que em 2022 completa 10 anos de esforço pelo reconhecimento dos catadores e catadoras — uma função vital, mas que nem sempre é valorizada pelos setores público e privado.
Para dar mais dignidade a esses profissionais, a ONG promove reformas em seu principal veículo de trabalho e fornece equipamentos básicos de segurança — retrovisores, fitas refletivas e luvas de borracha, entre outros —, além de convidar artistas para grafitar as carroças, ampliando assim a visibilidade de um ofício até então invisível. Recentemente, também passou a testar protótipos de carroças elétricas em São Paulo. Mas não só. Iniciativas como o app Cataki ajudam a fazer com que os trabalhadores da reciclagem recebam uma remuneração mais justa, além de melhorar os índices de reaproveitamento de materiais no Brasil.
Lançado em 2017, o aplicativo faz a conexão direta entre o gerador de resíduos e o catador de materiais recicláveis. Disponível gratuitamente para iOS e Android, o app permite que o usuário visualize o profissional da reciclagem mais próximo e negocie a retirada e o pagamento pelo serviço. Atualmente há aproximadamente 4 mil catadores conectados na plataforma em mais de 1.500 cidades do Brasil. Até hoje, já foram realizados mais de 200 mil downloads.
Reconhecimento internacional
Em 2018, durante evento na sede da UNESCO em Paris, o Cataki ganhou o prêmio Netexplo de Inovação Digital, apontado como a principal plataforma digital de impacto social entre 2 mil iniciativas do mundo todo que participaram da premiação. A iniciativa é também a vencedora do Chivas Venture 2019 na categoria People's Choice. A premiação é global e reconhece iniciativas tecnológicas de impacto socioambiental.
No ano passado, as ações do Cataki e do Pimp My Carroça durante a pandemia foram apontadas como uma das 10 principais iniciativas de combate à covid-19 do Brasil na categoria "Ajuda Humanitária" do Prêmio Empreendedor Social do Ano, entregue pelo jornal Folha de S. Paulo.
"O Cataki poderia ser mais uma startup 'green'. Mas, se fosse feita por uma empresa como outros aplicativos de demanda que existem por aí, de entregadores e motoristas, a gente cairia na lógica de exploração do trabalho, que não é no que a gente acredita", diz o artivista Mundano, fundador do Pimp My Carroça.
"Estamos há muitos anos nadando contra a correnteza, mas hoje já conseguimos nos mover na direção em que acreditamos, que é a de uma remuneração mais justa. Precisamos remover intermediários da cadeia de reciclagem em vez de colocar mais empresas no meio dos catadores. Por que a empresa paga mal para os catadores? Porque tem um monte de intermediário. Catador tem que vender direto para a indústria e receber pelo serviço", afirma.
Ele exemplifica citando algumas cidades brasileiras que estão criminalizando a atividade do catador informal, enquanto na verdade poderiam estar pagando pelo serviço público que eles prestam. "Ao mesmo tempo, existem algumas prefeituras que entendem isso e começam a ver que para a gente atingir qualquer compromisso global de redução de CO2, de economia circular e conseguir economizar água, vamos precisar dos catadores e catadoras — e apoiá-los para isso. É o que a gente tem procurado fazer, essas conexões entre catadores e cooperativas."
De acordo com Letícia Tavares, diretora executiva do Pimp My Carroça e do Cataki, outro diferencial é o que está por trás do aplicativo. Um app pode ser uma barreira porque nem todos têm smartphone, mas há um trabalho de relacionamento realizado fora da plataforma com todos os catadores via WhatsApp no Brasil inteiro. Isso é possível graças a voluntários e à própria equipe do Pimp My Carroça (que hoje conta com 27 pessoas), que se dedicam a atender os desafios dos catadores e falar com eles diante de qualquer dificuldade que tenham, em uma rede em conexão direta que se retroalimenta.
Mundano reforça que no próximo ano o objetivo é conectar mais elos desse ecossistema para atingir os objetivos de redução de emissões. "Queremos unir empresas interessadas em investir em melhores práticas ambientais, sociais e de governança e prefeituras dispostas a fazer ações reais. Estamos com o canal aberto para construir as conexões."
Temos chance de resolver dois problemas gigantes — o resíduo sólido e a desigualdade — numa tacada só. A longo prazo, mas temos de começar hoje.
Mundano, fundador do Pimp My Carroça
"É inaceitável que tenha mais de 3 mil lixões em atividade a céu aberto e a gente não consiga incorporar esses resíduos na sociedade", diz ele. "Esse é o tamanho do desafio da economia circular para o governo e para as empresas. O Cataki e o Pimp my Carroça são uma alternativa, um elo desse grande ecossistema que precisa também do consumidor, hoje mais atento a melhorar hábitos de consumo. É preciso uma grande campanha, uma relação de ganha-ganha."
Parceria com a Tetra Pak
Em abril deste anos o projeto firmou uma parceria com a fabricante global Tetra Pak e conseguiu dar um novo destino a 23,2 toneladas de embalagens longa vida na capital paulista. Na fase piloto do programa, 77 catadores foram contemplados pelo sistema de bonificação, uma espécie de subsídio que aumenta o valor do material e, consequentemente, a renda do profissional da reciclagem.
No app, o catador participante do programa Cataki+LongaVida recebe uma transferência bancária no valor de R$ 0,25 por quilo de embalagem coletada nos pontos parceiros. Pelo trabalho de consolidação, inclusão e acolhimento dos catadores, as cooperativas recebem um bônus idêntico pelo serviço no sistema produtivo proposto.
As embalagens longa vida são um material de difícil reaproveitamento e com poucos compradores. Diferente do papelão e do alumínio, que têm venda certa, a caixa longa vida é composta por papel, plástico e alumínio prensados em camadas, o que torna a reciclagem mais difícil: para que a reutilização seja feita da forma correta, é necessário separar essas camadas utilizando um processo para cada uma delas. Por isso, é mais raro os comércios comprarem esse tipo de material.
Cataflix, a Netflix dos catadores
A ONG criou em 2020 um canal de comunicação direta entre os catadores chamado de Cataflix. O programa, disponível no perfil do YouTube do Pimp My Carroça, conta com mais de 15 mil visualizações e pretende ser uma plataforma de conteúdo com informações relevantes sobre a reciclagem e o universo dos catadores.
"Até 2014 eu usava o termo errado, dizendo que o Pimp My Carroça queria dar voz aos catadores. Aprendi no processo que na verdade eles têm voz, mas não estão sendo ouvidos. O que a gente pode fazer é amplificar ou ceder o lugar para que eles possam falar por si mesmos", reflete Mundano.
Financiamento coletivo pretende arrecadar R$ 500 mil
Durante a pandemia muitas pessoas passaram a coletar material reciclável como única opção de renda. Esses profissionais se tornaram ainda mais vulneráveis no período, marcado por menos material reciclável nas ruas e mais "concorrência". Na ocasião, em 2020, o Pimp My Carroça conseguiu arrecadar R$ 1,5 milhão para ajudar mais de 2 mil catadores. Este ano, a ONG lançou uma nova campanha de financiamento coletivo com a meta de conseguir R$ 500 mil para distribuir cestas básicas para, pelo menos, 5 mil profissionais de todo o Brasil.
"O papel deles é de extrema importância na cadeia. Então, poder falar que é um trabalho que precisa ser reconhecido e ter o seu serviço pago é colocá-los em um outro lugar também", diz a coordenadora. "Tem uma questão de cidadania que é muito importante. Por meio dessas ações, do aplicativo, das campanhas, conseguimos ter um impacto positivo em um momento em que os maiores impactados seriam eles, pela situação vulnerável em que se encontram."
Dos muros do Brooklin para o mundo
Thiago "Mundano" mal sabia o significado do apelido que o tornaria conhecido quando escreveu a palavra pela primeira vez numa parede. O termo, derivado do latim e referente ao mundo e ao que é terreno, define bem a trajetória do artivista que começou a desbravar as ruas do Brooklin, bairro da capital paulista onde nasceu, quando ainda era moleque. Foi numa madrugada no início de 2007 que ele pediu a um carroceiro em situação de rua licença para escrever na parede da "casa" dele.
Acabou pintando a carroça também e viu que aquilo havia mexido com a autoestima do catador. Não demorou muito para perceber que suas frases poderiam circular livremente dessa forma, sem correr o risco de serem apagadas pela prefeitura. O que começou de maneira quase despretensiosa acabou se espalhando por outras cidades do Brasil e do mundo, sempre com frases que procuravam dar voz e reconhecimento a esse trabalho tão importante.
Em 2012, decidiu que poderia ir além da pintura e que, com mais gente, seria mais forte. O que era um ativismo pessoal virou um movimento colaborativo com o nome de Pimp My Carroça, por meio do qual viabilizou recursos de modo independente para melhorar a situação dos profissionais da reciclagem no país.
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