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"Acreditar que negro tem mais força é projeto de nação", diz historiadora

A BBB Natália - Reprodução/Gloplay
A BBB Natália Imagem: Reprodução/Gloplay

Paula Rodrigues

De Ecoa, em São Paulo

18/01/2022 16h45

O BBB mal começou e já tem dado o que falar. Na estreia do programa ontem (17), logo após os integrantes do camarote entrarem na casa, começou uma conversa em que a pauta racial foi tema principal. A mineira Natália Deodato, ao falar sobre a escravidão no Brasil, afirmou que pessoas negras foram escravizadas por serem eficientes e fortes. "Por que a gente veio como escravo? Porque a gente era bom no que fazia", afirmou.

A fala rendeu polêmica nas redes e levantou a discussão racial fora da casa também. Ecoa conversou com a professora de história da UFF (Universidade Federal Fluminense), Ynaê Lopes dos Santos, para entender como chegamos a pensamentos como o de Natália, que, segundo ela, não é uma exceção.

"Gerações de brasileiros e brasileiras foram ensinados a pensar assim. Mesmo depois de toda luta do movimento negro, do empenho de profissionais em tratar da história africana e negra brasileira de forma mais complexa, nós também não podemos descartar 150 anos de uma ideia de Brasil que foi pensada desde o Império, na qual a 'força física' dos africanos por um lado e do outro a 'preguiça' dos indígenas serviram de justificativa para a escravização de negros", diz a historiadora.

Para Ynaê, esse tipo de pensamento faz parte de um projeto de história do Brasil que vigorou durante mais de um século, e foi propagado e ensinado pelas elites brancas que estavam no poder.

É importante lembrar que durante três séculos, quase 10 mil viagens foram realizadas por navios negreiros portugueses ou brasileiros até os portos africanos, de acordo com o banco de dados internacional que reúne informações sobre o assunto. Cerca de 4,8 milhões de pessoas do continente foram sequestradas e trazidas para trabalhar à força no Brasil — o país é o que mais recebeu escravizados do mundo.

Segundo Ynaê, essa e outras atrocidades aconteceram por dois motivos principais. O primeiro deles é por razões econômicas. "O tráfico transatlântico já era um negócio lucrativo antes do Brasil existir para os portugueses, e durou 350 anos. Foi o comércio que mais gerou lucro no mundo. Ou seja, vender africanos dava lucro. É esse comércio um dos grandes responsáveis pela financeirização da economia do ocidente", diz a historiadora.

O dinheiro gerado pela venda de mulheres e homens negros, como explica a historiadora, ficou quase todo com países europeus, como a Inglaterra, Portugal, França e Holanda, que se desenvolveram às custas da escravização dessas pessoas, e uma pequena parcela para as oligarquias e descendentes de europeus que viviam nas Américas.

A outra justificativa para a escravidão à época foi racial. Europeus possuíam uma percepção das diferenças humanas estarem classificadas por raças, que também possuiriam uma hierarquização. Ou seja, para os brancos daquela época, negros eram seres humanos inferiores — muitas vezes, nem como seres humanos eram vistos.

"Não podemos excluir o poder que o discurso e prática religiosa tinham nesse momento. No caso dos portugueses, a Igreja Católica teve papel crucial na justificação moral da escravização africana, recuperando e reinterpretando passagens bíblicas de Cam e Caim, nas quais os africanos seriam descendentes diretos desses pecadores, e trariam na cor negra de suas peles essa mácula", afirma Ynaê.

Discursos como esses foram passados, reforçados e reinventados século atrás de século e acabaram construindo a sociedade como conhecemos hoje. Assim, o racismo estrutural, aquele que está "nas entranhas da sociedade", como explica Ynaê, ainda acaba gerando declarações como a da sister Natália.

"É muito difícil. A Natália é mais uma vítima desse sistema racista. Acreditar que o negro tem mais força física faz parte de um projeto de nação que foi criado. Nós fomos criados para acreditar nisso, não é um deslize. Os livros didáticos, por exemplo, durante muito tempo perpetuavam essa premissa. E nós temos que pensar que o Brasil, infelizmente, é um país em que o livro didático é um dos únicos livros que pessoas em idade escolar têm acesso", diz.

Por isso, na opinião da historiadora, uma das coisas fundamentais para mudar esse cenário e essa ideia errada sobre a escravidão é a necessidade de o Brasil passar por uma reforma do ensino e da forma como se ensina a história do país, trazendo a questão racial cada vez mais para o centro da formação da história brasileira.

"A questão racial não é um apêndice que a gente aprende só em uma aula ou que a gente lê em um box pequeno de um livro didático. Sem uma compreensão profunda das relações raciais, a gente não vai conseguir compreender as complexidades e contradições do Brasil. E essa mudança a gente faz trazendo as histórias africanas e indígenas para o centro", finaliza.