Aporofobia: aversão a pessoas pobres está presente até na arquitetura
A palavra aporofobia tem ganhado holofotes com as denúncias feitas pelo padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua. Entre as fotos postadas em suas redes sociais ele mostra elementos da chamada "arquitetura antipobres", que impedem, nos espaços públicos, a estadia, descanso ou passagem de pessoas em situação de rua. "Grades, dutos de água, pedras pontiagudas. Há os que querem disfarçar com vasos e com paisagismo", diz ele para Ecoa.
Aporofobia significa aversão, medo e desprezo aos pobres e desfavorecidos financeiramente. O termo, que se tornou um neologismo no Brasil, deriva do grego da junção das palavras á-poros [pobres] + fobos [medo].
Para entender como a aporofobia se enraíza na sociedade e cria uma construção mental que entende pessoas como mais ou menos humanas, Ecoa conversou com Lancellotti e com um doutor em psicologia social que estuda as causas e consequências do preconceito.
O que é aporofobia e quando o termo surgiu?
O termo aporofobia foi usado pela primeira vez em meados dos anos 90 pela filósofa espanhola Adela Cortina, que estuda, entre outros temas, a aversão aos pobres. Em 2017, foi escolhido como palavra do ano pela Fundación del Español Urgente (Fundéu) e no mesmo ano foi integrado ao dicionário da língua espanhola.
Assim como o termo xenofobia, que quer dizer aversão ou medo direcionado aos estrangeiros, Cortina procurou uma palavra que desse conta de descrever a rejeição aos pobres. Ela defende, aliás, que a verdadeira "fobia" só é direcionada contra os estrangeiros pobres e não pelos que detêm recurso financeiro ou boa condição de vida e passam a viver em um novo país.
"A aporofobia é um sentimento sempre presente no ser humano, segundo a Adela Cortina. Esse medo do pobre faz parte da nossa estrutura de pensamento, mas pode ser mudado por meio de uma educação", explica Lancellotti para Ecoa. "Acontece também com os refugiados, que morrem nos mares mediterrâneos, pois os países da Europa se negam a socorrê-los".
Quais são os alvos da aporofobia?
Para James Moura Jr., doutor em psicologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador visitante do Boston College (EUA) que estuda as consequências da aporofobia, é preciso entender a pobreza de uma perspectiva multidimensional para analisar alguns impactos sutis desse preconceito.
"Quando se pensa na ideia de linhas de pobreza, é o dinheiro que é usado como régua. Mas o filósofo e economista Amartya Sen traz ao debate a compreensão de que ela deve ser entendida como privação de forma mais ampla, para além da pobreza financeira", alerta.
"Nesse caso, a pessoa é privada de formas de ser e fazer - por exemplo, a falta de acesso à educação, mobilidade e cultura. Assim, é possível ser considerado pobre em uma perspectiva multidimensional. É uma forma mais ampla de compreender a pobreza", completa ele, afirmando que é por isso que muitas pessoas podem não se sentir bem-vindas em um lugar mesmo quando podem pagar por ele.
No Brasil, no começo dos anos 2000, o grupo Racionais MC's popularizou, entre as suas muitas composições, os versos da música "Negro Drama": "O dinheiro tira um homem da miséria, mas não pode arrancar, de dentro dele, a favela".
Os versos forjados na periferia de São Paulo vão ao encontro das explicações feitas por Moura Jr., para quem os símbolos que representam "os pobres" e seus territórios não desaparecem mesmo com a ascensão econômica e são percebidos e repudiados pela elite. Sobretudo entre os períodos de 2002 a 2015, momentos em que houve queda ininterrupta da desigualdade de renda no Brasil, como mostra estudo do Insper e publicado em reportagem na Folha.
"Depois desse período de incremento da renda, outras pessoas começaram a frequentar espaços elitizados como aeroportos, pois muitos que não tinham como pagar passaram a ter essa possibilidade" lembra o doutor em psicologia social.
"No entanto, havia uma construção das classes mais altas de uma espécie de preconceito aos pobres, pois eles ainda eram reconhecidos como pessoas de classes mais baixas por uma série de sinais simbólicos", completa.
Entre as afirmações de preconceito, o pesquisador lembra de falas como a do Ministro da Economia Paulo Guedes em um evento privado, que comentava o período em que o dólar estava a R$ 1,80: "Todo mundo indo pra Disneylândia, empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada", disse na ocasião.
Para Lancellotti esse preconceito vem aumentando na proporção em que o empobrecimento cresce. "Está acontecendo um empobrecimento acelerado, temos uma população de rua que aumentou 53% em 2019 [de acordo com dados da Prefeitura de São Paulo]. Mas esses números estavam abaixo da realidade, pois consideravam menos de 25 mil e nós acreditávamos que já tínhamos 32 mil pessoas nessas condições à época", aponta o padre.
De onde vem a aporofobia?
Moura Jr. explica que muito da nossa identidade é fruto de uma construção social. "Ainda que a gente tenha uma singularidade, nossa empatia com outros indivíduos está baseada em uma construção hierárquica que ainda é marcada por traços dos períodos das grandes navegações", explica o psicólogo.
O pesquisador explica que nesse período de colonização era comum enxergar pessoas como mais ou menos humanas de acordo com sua etnia, o que refletia nas relações dos europeus com povos colonizados e escravizados - e ainda hoje influencia a mentalidade de muitos, ainda que de forma inconsciente.
"Quando acontece um caso de assassinato em classes altas, que concentram em sua maioria pessoas brancas, há uma comoção nacional. Mas a mesma empatia não existe quando isso acontece com populações periféricas, indígenas e negras", afirma.
"Dessa forma, a aporofobia acontece de forma sistêmica. A existência de elevadores sociais e de serviço nos prédios são indícios desse preconceito, bem como os quartos para empregadas, que são cômodos em locais escondidos", completa.
Como combater a aporofobia?
Uma das formas de se combater a aporofobia é expondo e denunciando elementos da arquitetura antipobre nas cidades. Lancellotti, no entanto, reforça que isso não significa que o desejo é que essas pessoas permaneçam ao relento, mas sim que haja uma resposta humanizada ao problema.
"Não queremos que as pessoas fiquem nesses locais, mas sim que exista uma resposta humanizadora de acolhimento. Temos que sair da hostilidade para a hospitalidade", afirma, completando que é fundamental haver um programa governamental que garanta moradia para os mais pobres.
Entre as saídas possíveis, o padre cita ações como repúblicas, redes hoteleiras e locação social (com parte do custo subsidiado). E acredita que seria melhor que os recursos usados para essas instalações fossem convertidos em energia para solução do problema.
Em relação ao preconceito, Moura Jr. diz que é preciso questionar os sentimentos e buscar entender por que eles existem. "Se temos empatia ou aversão, temos de entender que a forma como nos sentimos também é uma construção social" explica.
Além disso, é importante procurar informações sobre o grupo que desperta esse sentimento para entender e humanizar sua trajetória. "Também é preciso questionar a ideia de meritocracia, de que essas pessoas são culpadas por viverem nessa situação. Muitas vezes essa meritocracia é mais aplicada ao outro do que a nós mesmos", completa. Por fim, ele aconselha a fortalecer espaços e participar de associações que auxiliam pessoas nessas condições.
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