Sem predadores, peixe-leão vira alvo em Noronha para evitar desequilíbrio
O peixe-leão pode chegar a 48 centímetros de comprimento. Sua coloração traz tons de marrom, bege, branco e vermelho alaranjado. As nadadeiras em formato de leque dão a ele um aspecto inusitado. Vistoso, parece mais uma das belas espécies que habitam a costa brasileira e enchem os olhos de mergulhadores e turistas.
Mas as coisas não são assim tão simples: o peixe é uma ameaça ao equilíbrio dos ecossistemas das águas brasileiras. Sobretudo no arquipélago de Fernando de Noronha, que habita desde o final de 2020, provavelmente trazido por correntes marítimas do Caribe — onde há anos provoca estragos.
Originária do Indo-Pacífico, essa espécie traz riscos por não ter predadores naturais no Oceano Atlântico. Com uma fome voraz, ela pode diminuir a abundância de outras espécies, dizimar organismos endêmicos e prejudicar a atividade pesqueira. Além disso, possui espinhos, principalmente na região dorsal, que inoculam em suas vítimas um veneno que pode provocar febre, dor intensa, náuseas, tontura e fraqueza muscular, entre outros efeitos.
Para tentar impedir o avanço dessa ameaça, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente, que cuida do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, traçou um plano de ação antes mesmo do seu aparecimento — a sua chegada já era prevista por pesquisadores, pois a região já havia recebido diversas espécies da fauna marinha do Caribe.
Em um primeiro momento, o ICMBio promoveu um treinamento em parceria com a ONG Projeto Conservação Recifal, do Recife. Além dos técnicos do instituto, mergulhadores que atuam na região foram instruídos sobre como identificar a espécie. E foi justamente um deles que avistou, durante uma atividade recreativa, o primeiro peixe-leão em Noronha. O animal foi capturado e levado para a sede do ICMBio para análises laboratoriais.
A partir disso, os pesquisadores fizeram um estudo para, dentro da unidade de conservação, estabelecer normas de coleta e manejo do animal. O peixe-leão precisa ser capturado com arpão, cuja utilização é proibida dentro do Parque Nacional. Foi preciso que o conselho gestor do ICMBio aprovasse o plano de manejo para que o uso do instrumento fosse autorizado.
"Na ilha, há mais de 25 mil mergulhos autônomos por ano. Percebemos, então, que precisávamos capacitar esses mergulhadores para nos auxiliar no monitoramento, captura e manejo. Com a aprovação do projeto, os que passaram pelo treinamento podem levar arpões nas embarcações", explica Ricardo Araújo, engenheiro agrônomo, coordenador de pesquisa e manejo do ICMBio, há 11 anos estabelecido em Noronha.
Pelo menos 60 pessoas, entre mergulhadores, condutores de embarcações e técnicos do instituto foram capacitados para participar do plano de ação. Um número razoável, na avaliação de Araújo, cuja equipe é formada por cinco pessoas.
Desde a primeira aparição, já foram capturados 38 peixes-leões em Noronha. Só no dia 9 de fevereiro, no porto, foram encontrados quatro deles. Ao todo, 60 avistamentos foram relatados, o que significa que outros 22 peixes podem estar vivendo no local.
Araújo diz que é difícil avaliar o que esse número representa. "Não temos ideia, ao certo, de quantos animais desses estão na ilha. Depois da primeira captura, ficamos seis meses sem pegar nenhum outro. Ao que parece, a infestação não é tão grande quanto imaginávamos, embora não tenhamos dados suficientes para dizer que ela está sob controle."
Um aspecto chama a atenção dos pesquisadores: estão sendo capturados animais maiores. Isso é uma indicação de que os peixes, de certa maneira, conseguiram se estabelecer, estão se alimentando e atingindo um tamanho em que podem se reproduzir. "Erradicá-los é praticamente impossível. O controle é o que estamos tentando fazer, até seguindo o que as ilhas do Caribe fizeram", afirma Araújo.
Segundo o servidor do ICMBio, existe a possibilidade de que, caso haja uma grande infestação do peixe-leão em Noronha, ele seja liberado para consumo e comercializado. No Caribe, é usado para fazer sushi, por exemplo. É também possível que sejam feitas expedições de caça, maneira também de controle.
Araújo, natural de Brasília, atua há 20 anos na área e está desde 2007 no ICMBio. Apesar dos vários anos de experiência, ele afirma que o combate a uma espécie invasora é algo inusitado em sua carreira. "É uma batalha hercúlea, complexa."
Parcerias são fundamentais
O projeto do ICMBio em Fernando de Noronha, além de contar com os pesquisadores do instituto, tem o apoio fundamental de parceiros. Um deles é o brasileiro Paulo Roberto Kelling Bertuol, que atua em Bonaire, ilha no Caribe, onde a presença do peixe-leão é uma realidade há 12 anos.
Outra parceria importante é a ONG Projeto Conservação Recifal, criada em 2017, cujo foco de atuação é a Área de Proteção Ambiental Costa dos Corais, reserva ambiental com cerca de 130 km de extensão entre Tamandaré, no litoral sul de Pernambuco, e Maceió, no norte de Alagoas.
A bióloga recifense Gislaine Lima é uma das pesquisadoras do projeto, que conta atualmente com seis colaboradores. A ONG depende de recursos oriundos de editais públicos para atuar. Quando há financiamento, ela pode contratar outros biólogos e mergulhadores para ajudar no trabalho de preservação dos recifes de corais.
De tempos em tempos, a ONG vai até a base do ICMBio em Noronha para ajudar no plano de mitigação do peixe-leão. "Ele [o peixe] é bonitinho, mas ordinário. E generalista. Não tem uma espécie preferida. O que couber na boca, ele come", brinca a bióloga. Ela conta já ter encontrado três peixes no estômago de um animal capturado com cerca de 50 cm, o que prova sua fome voraz.
Para os corais, ele é especialmente perigoso. Por ser um predador de topo, pode dizimar populações importantes para o ecossistema que se sustenta em volta desses animais, que vivem em colônia e são essenciais para a produção de oxigênio para o meio ambiente.
"Já temos um mundo em caos, com poluição das águas dos oceanos, o que deixa os corais mais frágeis. Como há uma competição entre as espécies, os corais, estando mais fracos, podem levar a pior", explica Gislaine.
Além de atuar na pesquisa em Noronha, a ONG também faz um trabalho de conscientização da população local. Algumas das ações acontecem em escolas, nas quais o peixe é apresentado e o perigo que ele oferece é exposto aos alunos de maneira lúdica.
Esta reportagem foi desenvolvida em parceria com a Republica.org, organização social apartidária e não corporativa que se dedica a contribuir para a melhoria do serviço público no Brasil, em todas as esferas de governo.
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