Com mostra de arte indígena, Gean Pankararu amplifica cultura ancestral
Gean Ramos — ou Punâ Pankararu, seu nome indígena —, cresceu na região do submédio São Francisco, em um território que se divide em três municípios do estado de Pernambuco: Jatobá, Tacaratu e Petrolândia. Décimo segundo filho de Seu Eronildes e Dona Tida, passou a infância na aldeia, estudando na escola Pankararu, buscando água e tomando banho no rio, tangendo jumento, caçando de baleadeira e atravessando o riacho para ir à casa dos avós, Severa e Pai Zé. "Sempre com os meus irmãos, que tinham a mesma média de idade", conta.
"O meu pai e a minha mãe gostavam muito de cantar e o meu pai tocava violão e cavaquinho, modernidades que ele aprendeu no seu tempo de jovem quando saiu para trabalhar fora. Então, em casa tinha música na calçada e os meus irmãos mais velhos também tocavam e cantavam. Além dessas sonoridades, cresci ouvindo o som dos praiás, dos toantes, das gaitas, dos rabos de tatu, dos gritos de celebração nas festas tradicionais da aldeia", diz Gean, 41.
Foi natural que ele se reconhecesse como artista logo cedo, e trilhasse um caminho como músico e produtor cultural que acabou levando à criação de um festival. Hoje a Mostra Pankararu de Música movimenta o sertão pernambucano a partir do fomento à produção artística indígena, realizando capacitação profissional, shows e imersão artística na Aldeia Bem Querer de Cima, a 7 km da cidade de Jatobá (PE), onde ele mora atualmente.
A mostra cria diálogos entre o ancestral e o contemporâneo, e desenha uma possibilidade de futuro, define o produtor. De uma equipe de 30 pessoas, a maior parte da mão de obra é composta por indígenas com formação profissional por meio de cursos e em parceria com o Sesc PE. Ainda sem data, o evento foi anunciado recentemente como um dos selecionados entre os projetos que serão patrocinados pela plataforma Natura Musical em 2022.
"Quanto mais soubermos da cultura e costumes de um povo, mais se gera a necessidade de respeitar e preservar", diz Gean. "Incluímos em nossa programação o nosso patrimônio imaterial e imortal, documentamos nossos detentores de saberes, zelamos e preservamos o nosso solo sagrado, priorizamos o trabalho da nossa comunidade, partilhamos."
De mudança para SP, o violão como companhia
Na adolescência, Gean morou no interior de São Paulo, em Cesário Lange, numa fazenda, onde ele, seu irmão e um outro jovem plantavam hortaliças. Sem amigos e com as noites de final de semana livres, começou a tocar violão. "Aprendi os primeiros acordes com 8 anos de idade, mas nunca tinha me dedicado. Como eu já estava com 15 anos e um monte de coisa guardada dentro de mim, foi através das músicas que ouvia no rádio e ia tirando de ouvido que fui me envolvendo e aliviando as tensões", conta.
Ele se recorda também que, na época em que morou na cidade, tinha uma vizinha, a Zita, que ouvia discos com músicas lindas. "As nossas casas eram parede com parede no bairro de Itaparica, e eu achava muito bonito ouvir as sonoridades dos acordes das músicas — que depois vim a descobrir que eram esses medalhões da MPB. O repertório começou a ser feito aí."
Gosto de tocar e cantar, de sentir que minha música tem uma função social, humana, principalmente para o meu povo Pankararu, ou de ser facilitador na compreensão do que somos.
Gean Ramos, músico e produtor cultural
"Sinto uma necessidade enorme de fortalecer o coletivo, as bases da minha cultura, a história e memória do povo indígena do país que está ameaçada por muitos inimigos: é conjuntura política, é a falta de políticas públicas culturais especificas e diferenciadas e de preservação permanente para os povos indígenas, é o poder da alienação desses tempos digitais, a descaracterização, enfim."
Inspiração na cultura mãe
Depois que entrou de cabeça em suas origens, conta, tudo mudou e se renovou em sua composição, que é o que Gean mais gosta de fazer. "Com certeza a maior inspiração é a minha cultura mãe. Minhas referências são os cantores do rádio, a galera que tocou muito em rádios dos anos 90 pra cá — ouvi um pouco de todos esses movimentos encaixotados que o mercado oferece; hoje mais velho, seleciono muito o que escuto, gosto de artistas cuja música seja comprometida e que transmita verdade."
O estilo de composição rende comparações com Milton Nascimento na comunidade originária. "Eita, acho não, fico muito lisonjeado, Milton é dos mais incríveis, e não tem comparação!", comenta. "Acho que o fato de buscar dar referência brasileira à minha música acende a comparação, que chega pra mim como elogio grandioso. Ele veio primeiro e merece todo respeito, e antes dele veio a música indígena, que acredito que deve ter influenciado ele também. Tá aí; deve ser essa a razão da comparação."
Ele conta que, para chegar no conceito da mostra Pankararu, muita coisa aconteceu antes. Gean realizou entre 2005 e 2006 um projeto chamado Interpretar, em que levou música indígena contemporânea para as salas de aula nas escolas da aldeia — canções que falavam do cotidiano dos alunos, a serem interpretadas por eles. "A ideia era provocar o pertencimento, a apropriação que vai se abalando aos poucos à medida que outras culturas vão se contrapondo."
Em 2015 realizou mais uma edição do projeto, dessa vez integrando as escolas do município de Jatobá com as da aldeia. "O objetivo sempre foi criar um diálogo saudável e adquirir mais respeito ao nosso povo, ao nosso comportamento, às nossas tradições. Eu sabia que, além dos alunos, os professores também seriam alcançados. E o projeto foi um sucesso, mostrando muitos potenciais artísticos de diversas áreas."
Anos depois, Gean foi convidado para participar do projeto Sonora Tradições, com cinco povos do estado de PE se encontrando e construindo juntos sua programação. "Isso despertou minha autonomia e desejo de realização. Terminou o Sonora em novembro de 2019 e em março de 2020 estávamos realizando a I Mostra Pankararu de Música. Foi um gatilho, eu só precisava ser acionado da maneira certa."
Gean relembra: "Comecei pedindo à nossa força maior, o dono de todos nós aqui na Terra, e abaixo dele fui me conectando com minha natureza e seus representantes, pedindo sabedoria, força e coragem. E fui acionando minha família, os parentes indígenas, os amigos, e a mostra foi acontecendo, criando forma. Fui sentindo muitas coisas bonitas, desde a preparação do espaço, porque ali estava muito da gente, a terra as árvores, as memórias."
Diversas vezes me peguei emocionado limpando as árvores. Eu passei um mês indo dormir numa barraca no lugar onde acontece boa parte da mostra, levava meu campiô (cachimbo), meu cachorro Diamante e meu violão e ficávamos lá, sem energia, na luz do fogo, e lá senti que tudo ia dar certo, vi a mostra nascer para crescer e seguir viva.
Gean Ramos, músico e produtor cultural
No ano seguinte, 2021, o evento foi contemplado pela Natura. "Agradeci muito e passando a euforia foi caindo a consciência do cenário pandêmico que estávamos vivendo. Mas deu certo e realizamos a nossa segunda edição já dando início ao seu maior propósito, que é valorizar e documentar de forma consistente, com verdade, o patrimônio humano, imaterial, imagético, étnico e territorial."
A equipe criou o filme "O Canto Pankararu", que conta a história de sete representantes da música pankararu, e o evento transmitido online contou com a presença de Ailton Krenak e Mateus Aleluia. Foram três dias de lives, transmitidas diretamente do território indígena com uma equipe 90% indígena atuando, desde a produção do filme até a execução das transmissões.
A terceira edição, já confirmada para 2022, deverá ter uma programação itinerante entre os três municípios do submédio São Francisco, mapeando e reconhecendo os artistas locais ou iniciativas que as comunidades ofereçam. "Ao mesmo tempo nossa equipe passará por um processo de formação conduzido por um profissional de cada segmento", adianta Gean.
"Uma das coisas mais fortes, para mim, é o fato de contemplar uma ação coletiva, realizada em território indígena no sertão de Pernambuco, fora dos holofotes e de onde geralmente não se tem o reconhecimento de indígenas. Mostra que o edital e sua curadoria estão atentes."
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