Professora impacta mais de 50 escolas com projeto que valoriza mulheres
Gina Vieira Ponte iniciou a segunda série sem saber ler nem escrever. Aos 8 anos, a menina negra com cabelo cacheado curtinho, roupa puída e sapato gasto decidiu ser invisível na escola para sobreviver. Sofria com as ofensas de colegas e educadores por ser negra e pobre.
Não entendia quando o seu pai não alfabetizado dizia que a filha iria ganhar o mundo na escola. Nem o porquê de sua mãe, que estudou até a quarta série, defender a educação com afinco.
A garota sentava na última carteira e não era participativa nas aulas do Centro de Ensino Fundamental 12, em Ceilândia, região do Distrito Federal. Por isso não esperava ser notada pela professora Creusa Pereira dos Santos Lima — uma professora negra, como ela.
Naquele ano de 1983, Gina aprendeu a ler e a escrever no colo de Creusa. Pegou gosto pela educação. "O nosso encontro foi tão potente que, no colo da professora, decretei para mim mesma: 'não vou mais ser invisível, vou ser professora.'" Mas não seria uma professora qualquer. Seria como Creusa, faria a diferença na vida das pessoas.
Gina cumpriu o seu decreto. Exerceu a profissão de professora por 30 anos, até se aposentar, em 2022. Mas deixou a sua marca na história da educação brasileira com o projeto "Mulheres Inspiradoras", uma iniciativa de valorização de mulheres e meninas por meio da leitura de livros e da produção de textos.
O programa se tornou política pública no Distrito Federal e já impactou mais de 350 educadores e 50 escolas públicas.
Uma revolução silenciosa
Em 2014, Gina desenvolveu o "Mulheres Inspiradoras" na mesma escola em que estudou, em Ceilândia. O objetivo era destacar o protagonismo das mulheres. Para isso, a professora escolhia 10 mulheres inspiradoras para apresentar aos alunos do nono ano.
Eles conheceram histórias como as de Malala Yousafzai e Anne Frank, e também de mulheres próximas como a professora Creusa e as mães e avós dos estudantes. Os jovens entrevistaram as mulheres de suas famílias e os depoimentos se transformaram em um livro homônimo ao projeto.
"As mulheres fazem uma revolução silenciosa. Infelizmente, elas nascem, lutam e morrem sem serem reconhecidas", lamenta Gina. E complementa: "'Mulheres Inspiradoras' tem a força de uma biografia ancestral. Representa um movimento de mulheres negras e de movimentos sociais que há anos lutam pelos seus direitos".
A iniciativa na escola de Ceilândia aconteceu apenas nos anos de 2014 e 2015, mas foi o suficiente para conquistar 13 prêmios, dentre eles o 1º lugar do prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos - Óscar Arnulfo Romero, e o prêmio Professores do Brasil.
Ao longo dos anos, no entanto, o projeto cresceu. Em 2017, foi implementado em 15 escolas públicas de Brasília com o apoio financeiro do Banco de Desenvolvimento da América Latina e da Organização dos Estados Ibero-Americanos.
O sucesso foi tanto que, em 2021, se tornou uma política pública de valorização de mulheres e de enfrentamento às violências no Distrito Federal. "Nós conseguimos isso porque na época havia um grupo da estrutura institucional que atuava seriamente na defesa dos direitos de meninas e mulheres", conta Gina.
Planos para 2022
Desde que se aposentou, no início deste ano, Gina não está mais à frente do "Mulheres Inspiradoras". Mas, por agora ser uma política pública, o projeto deve ocorrer todos os anos sob a coordenação da Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação no Distrito Federal.
A Subsecretaria não respondeu Ecoa sobre os planos de "Mulheres Inspiradoras" para o ano de 2022. Mas a iniciativa envolve um curso anual para os educadores criarem projetos autorais com os temas de diversidade, igualdade de gênero, violência contra a mulher e questões étnico-raciais.
Projetos autorais
Um dos educadores que realizou o curso, no ano de 2019, foi Carlos André de Jesus Campos. Baseado no projeto de Gina, o professor de História criou o "Elas do Sol - Mulheres Inspiradoras da Quebrada" em Ceilândia, na comunidade Sol Nascente, uma das maiores favelas da América Latina. A inspiração maior veio de sua mãe, Maria de Jesus, uma mulher negra e nordestina que educou os filhos sozinha e sofreu violência doméstica.
Por meio do "Elas do Sol", os jovens do Centro de Ensino Fundamental 28 conheceram a trajetória de mulheres da comunidade, leram autoras negras como Conceição Evaristo e Cristiane Sobral e discutiram a violência contra a mulher. Alguns alunos identificaram casos de abuso na própria família e contaram com o apoio do conselho tutelar.
"Tive a oportunidade de ver, na prática, a função social da escola de despertar o senso crítico dos alunos", conta o professor. Assim como Carlos, Gina defende uma escola humanizada. "No imaginário coletivo, uma escola boa é dura. Eu nunca acreditei nisso. A violência me silenciou e me machucou. O que me fez aprender foi o afeto e o pertencimento."
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