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Guerra na Ucrânia pode mudar os rumos da transição energética na Europa?

Vista da cidade alemã de Adorf, com casas e turbinas eólicas, em 2015 - Ben Schonewille//iStockphoto
Vista da cidade alemã de Adorf, com casas e turbinas eólicas, em 2015 Imagem: Ben Schonewille//iStockphoto

Juliana Domingos de Lima

De Ecoa, em São Paulo (SP)

10/03/2022 06h00

A invasão da Ucrânia pela Rússia, ocorrida no fim de fevereiro, tem trazido consequências humanitárias e econômicas para o continente europeu. No plano econômico, uma das preocupações centrais é a possível interrupção no fornecimento de gás natural russo, do qual muitas nações europeias dependem. Cerca de 40% do gás importado pela Europa vem da Rússia.

Em função disso, a União Europeia apresentou na terça-feira (8) um plano para reduzir sua dependência energética do país de Putin, buscando diversificar as ofertas de gás, substituir seu uso no aquecimento e na geração de energia e acelerar o uso de renováveis.

Dias após a invasão, a Alemanha — que importa metade de seu gás natural da Rússia e é a maior economia do bloco — já havia apresentado uma série de medidas para diversificar suas fontes de energia, acelerando principalmente a expansão de eólica e solar.

A ênfase na independência energética deve favorecer a transição para fontes renováveis ou pode colocá-la em segundo plano? Para discutir a questão, Ecoa conversou com o economista Diogo Lisbona Romeiro, pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV. Leia abaixo:

Ecoa - O conflito entre Rússia e Ucrânia pode acelerar a transição para fontes de energia renovável na Europa? Qual o cenário energético no continente?

Diogo Lisbona Romeiro - Há países europeus que já estão apostando nas fontes renováveis há algum tempo. A Alemanha é um dos que investiram pesado: depois de Fukushima, baniu [o uso de energia] nuclear e teve um custo elevado [para isso]. Apostou em solar com subsídio pesado para essa migração, tem muito incentivo para aquisição de veículos elétricos, muito investimento para eletropostos, para infraestrutura de recarga. Estão mirando para uma transição energética.

Dentro da União Europeia, há uma certa resistência à [energia] nuclear, sobretudo pós-Fukushima [desastre ocorrido em 2011 no Japão]. Mas há países cuja matriz energética é predominantemente nuclear, França por exemplo.

Em função disso, há um avanço já significativo para as renováveis e uma dependência enorme do gás. A Europa tem um papel importante nesse mercado de GNL [sigla para gás natural liquefeito]. Ano passado, houve um problema de oferta — um aquecimento da demanda e a armazenagem de gás caindo —, e picos elevados no preço do gás, com grande repercussão de custo. Eles já vêm de uma alta no preço do gás no segundo semestre [de 2021]. O custo do gás é um problema para a indústria e para as residências também, que precisam de aquecimento.

A guerra e as sanções à Rússia aumentaram a preocupação com a dependência energética, que já existia antes. Mas, no curto prazo, a Europa não consegue abrir mão do gás da Rússia. Não há uma oferta no mundo que consiga entregar esse volume. O custo com que importa esse volume da Rússia é um - se ela tivesse que, da noite para o dia importar isso tudo via GNL, teria um preço enorme e não conseguiria no volume que ela depende hoje.

O que deve acontecer então?

O concreto no curto prazo está dado: a Europa tem uma dependência do gás que ela não consegue contornar. E o gás tem um papel na transição. Há matrizes que ainda têm um peso importante de fóssil, de carvão, e ele alivia as emissões.

No início de fevereiro, a Comissão Europeia anunciou que passou a considerar gás natural e nuclear como combustíveis para transição energética, o que permite um acesso a taxas de financiamento mais atrativas.

Isso foi importante principalmente para a energia nuclear. A França vinha com uma resistência enorme à expansão do nuclear e à extensão da vida útil dos reatores, precisando de um investimento grande para renovação. Já há uma lei que determinava a diminuição da geração para 2035. Com essa medida, o governo até anunciou novos investimentos além da extensão da vida útil. Então acho que talvez, o que saia dessa guerra e dessa medida de fevereiro é revisitar o papel do nuclear na geração de energia do continente.

Países que já têm uma matriz focada em nuclear dificilmente vão abrir mão disso. Devem estender a vida útil dos reatores e até considerar uma expansão. Países que baniram, como a Alemanha, vão enfrentar uma certa pressão [para retomar a energia nuclear], porque se precisarem sair do gás ou ter uma menor dependência dele, é difícil repor isso tudo com renovável da noite para o dia.

Fora isso, ainda tem o hidrogênio: há um pacote importante de investimento em hidrogênio, inserido na recuperação verde pós-covid que eles determinaram. Essa indústria pode mudar a cara da transição, por exemplo em termos de transporte. É uma questão ainda em aberto.

A resistência à energia nuclear que você menciona tem relação com os riscos que ela traz. Agora mesmo, durante a guerra, a possibilidade de um desastre tem sido levantada caso usinas sejam atingidas. Como isso entra na equação?

Esse é um ponto importante. Ela já enfrenta resistência interna nos países em relação à segurança, ao risco dos dejetos radioativos. Isso pode fortalecer a resistência social, principalmente local, onde estão as usinas. Não é algo desprezível. Mas em termos de política energética, vai ser tentador porque é uma energia que tem um custo fixo. Se for preciso sair do gás para reduzir a dependência da Rússia, certamente a indústria nuclear vai estar na mesa, com todos os contras sociais.

Os países desenvolvidos têm um grande espaço para o descomissionamento [desativar instalações de usinas de geração de energia não renovável]. Mas essa decisão de mudança da matriz é difícil. Se você determinar, como fez a Alemanha, o descomissionamento das usinas nucleares, isso tem um custo imediato. Ela teve que importar carvão e adicionar nova capacidade. A transição da matriz pode ser custosa se for acelerada.

Esse contexto pode influenciar outras regiões do mundo na adoção mais rápida de fontes renováveis?

A Europa tem essa preocupação geopolítica enorme com a dependência energética da Rússia e há decisões que talvez possam sair por esse canal. Mas já existem outros canais, metas para se tornar net zero [zerar emissões líquidas de gases de efeito estufa] daqui a algumas décadas, e uma agenda de transição que já é muito forte.

Para outros países, por exemplo o Brasil, um fator é o preço do [combustível] fóssil. Agora a gente está num pico, mas um patamar elevado aumenta a competitividade das renováveis numa transição. Há outros fatores envolvidos além da questão da Rússia.

As consequências do conflito, sim, podem criar um quadro que favoreça. Ainda assim, quando olhamos para projeções do que a Agência Internacional de Energia projeta para 2040, 2050 e para a trajetória que a gente está, há um gap enorme, a matriz é muito fóssil. No Brasil, a nossa escalada ainda é grande.

O que pode impulsionar essa transição?

Na década de 1970, o choque do petróleo trouxe uma resposta embrionária de [energias] renováveis. Os Estados Unidos tiveram uma lei que determinou que as distribuidoras contratassem energia renovável de produtores independentes. No Brasil, teve o pró-álcool. Na década de 80, teve todo o movimento de [energia] solar, mas o custo ainda era muito alto. Muito da resposta daquela época tinha um viés de segurança energética e substituição por alternativas ao petróleo.

O mundo mudou, e eu acho que a preocupação climática hoje já traz muitas pressões. Os eventos extremos vão ficar cada vez mais fortes, e a pressão social também, com as novas gerações. A percepção delas sobre a mudança climática é muito diferente. À medida que o tempo vai passando, chegam pessoas com outras restrições na cabeça para as tomadas de decisão.