Ela ajuda a transformar o plástico retirado dos oceanos em novos produtos
Mais de meia tonelada de redes de pesca são perdidas no litoral brasileiro todos os dias. Além desse material tão resistente que leva décadas para se decompor — e que representa uma ameaça grave à fauna marinha —, a quantidade de latas, garrafas PET e outros itens descartados nas praias fez com que a catarinense Isabela Veronezzi decidisse se dedicar a encontrar soluções para transformar o "lixo" em produtos com design e valor agregado.
Nascia assim a Reorder, que está se tornando um elo importante em uma verdadeira rede de agentes que compõem a cadeia da moda, desde a pesquisa de matérias-primas com menor impacto no ambiente até o consumidor final. A empresa acaba de firmar uma parceria com a Mindse7 C&A para o lançamento de um projeto voltado para o combate à poluição dos oceanos.
A iniciativa, que envolve ações multidisciplinares para a conscientização da sociedade e teve sua primeira mobilização no início deste mês com a limpeza da Praia do Buraco, em Balneário Camboriú (SC), inclui o lançamento de uma camiseta em homenagem ao Dia Mundial da Água, em 22 de março.
A peça é feita com algodão produzido de acordo com as diretrizes da BCI (Better Cotton Initiative), maior programa de sustentabilidade do algodão do mundo que assegura que agricultores adotem práticas de produção mais sustentáveis do ponto de vista ambiental, social e econômico.
Parte da renda obtida com as vendas (que serão realizadas online) será revertida para as iniciativas da Reorder e para a ONG Eco Garopaba, que trabalha na conscientização da comunidade sobre a correta destinação de resíduos, a reutilização de materiais e a reciclagem, além de incentivar o esporte e a inclusão social por meio de práticas relacionadas ao meio ambiente.
"A partir da consultoria da Reorder assumimos esse lugar de humildade, em que estamos aprendendo. A Mindse7 funciona como um laboratório de ideias, e estamos nos abrindo para entender novas matérias-primas que sejam menos impactantes", conta Caio Vitor Sobreira da Silva, coordenador de conteúdo da Mindse7 C&A. "Falamos muito sobre a embalagem desse produto, para que não fosse só uma peça com menos impacto. Esse é um desafio e estamos brigando para levar essas iniciativas a uma escala maior."
A previsão, segundo ele, é de que ainda em 2022 a empresa passe a usar embalagens, cabedais e etiquetas, por exemplo, com materiais de menor impacto no ambiente. "Até o final do ano teremos alguns lançamentos em parceria com a Reorder e isso inclui coleções que trabalham outras matérias-primas com o certificado Cradle to Cradle". O selo verifica questões como segurança, circularidade e responsabilidade de materiais e produtos em cinco categorias críticas para a performance sustentável: saúde do material; circularidade do produto; ar limpo e proteção do clima; gestão da água e do solo; e justiça social.
Limpeza da praia
A ação de limpeza da praia começou com a distribuição de sacos de juta na manhã de um sábado ensolarado, quando um grupo com mais de 30 voluntários foi recolhendo o lixo. De longe, o local parecia limpo, mas ao entrar nas restingas era possível visualizar bitucas de cigarro e outros tipos de lixo escondido nas areias. Os participantes se impressionaram com a quantidade de material recolhido: foram 45 quilos de garrafas, latas e outros itens retirados em algumas horas.
"Além de influenciar outras pessoas a se envolverem em ações de cuidado com o ambiente, nosso intuito é causar uma provocação na moda. É preciso entender que a gente pode buscar alternativas que gerem menor impacto e atacar esse problema, que é o plástico nos oceanos, fazendo a transformação do lixo em luxo para que as pessoas se sintam orgulhosas de usar parte da solução", diz Isabela, 41.
Ela é formada em turismo, fez pós-graduação em marketing e atuou por alguns anos na área de comércio exterior. Casada com um surfista, está habituada a viajar o mundo em busca da onda perfeita ao lado dele e dos dois filhos do casal — e nunca se conformou com a quantidade de lixo nas areias. "Minha filha se lembra até hoje de uma praia deserta na Indonésia onde tinha muita garrafa plástica vinda de Taiwan, dos Estados Unidos... Pelo rótulo nós íamos vendo os nomes dos países. Aí eu percebi que aquilo não podia continuar assim, a gente educa pelo exemplo", conta.
Biquínis feitos com redes de pesca
"Eu já atuava com a Carolina Scorsin e o Jairo Lumertz na Eco Garopaba praticando ações de conscientização. Então tive a ideia de transformar um produto para aproximar as pessoas das causas. Porque a gente chegava como ONG pedindo verba para as empresas e ninguém se envolvia. Aí falou: vamos fazer as pessoas quererem, comprarem a causa de verdade", conta Isabela.
Foi quando ela criou a primeira coleção de moda praia da Reorder com poliéster reciclado de garrafas PET, em 2016. Em paralelo, conheceu o tecido feito de redes de pesca recicladas fabricado na Itália. "Primeiro eu trouxe esse tecido para o Brasil, e junto lancei uma primeira coleção utilizando o poliéster reciclado e o tecido de rede de pesca. Cada biquíni tinha o nome de uma praia poluída. O objetivo era falar sobre a causa e a solução. Essa coleção foi para lojas como a NK, em São Paulo, entre outras. A ideia era colaborar com marcas que também quisessem trazer matérias-primas conscientes e engajar com a causa dos oceanos."
Isabela acredita que, uma vez que o consumidor tem contato com a causa e entende que a marca está trazendo soluções nesse sentido, pode priorizar produtos mais sustentáveis no dia a dia. "Todas as ações fazem a diferença, isso se reflete no ambiente, nos oceanos. Cabe a nós fazer melhores escolhas, estar atento ao problema para mudar a nossa realidade. Se a gente não agir agora, até 2050 haverá mais plástico nos oceanos do que peixes — é o que diz a frase da camiseta que criamos", diz.
Segundo ela, quando o fornecedor entender que há uma demanda maior por esse tipo de produto, a indústria vai começar a produzir mais matéria-prima com menor impacto ambiental. "Se não houver um começo, a coisa não desenrola. Esse tipo de matéria-prima ainda tem um custo mais alto. Porém, quando começa a ganhar escala, automaticamente o custo diminui. Há toda uma cadeia que precisa ser trabalhada, por isso faz sentido a parceria com a Mindse7, porque sempre tive como horizonte chegar numa grande empresa que abraçasse a causa."
Pesquisa de materiais
A empreendedora e sua equipe passaram dois anos tentando desenvolver um fio feito com as próprias redes recolhidas em Itajaí [em SC, onde fica a sede da empresa], o maior porto pesqueiro do Brasil. Quando estavam quase chegando a um produto viável veio a pandemia e o projeto foi suspenso, mas não está descartado.
"Ao mesmo tempo, a gente se dedica muito a entender os impactos da matéria-prima e quais são as novas opções. Temos contato com outras empresas que fazem outros fios. Um que já tem uma propriedade que gera um impacto menor que um fio tradicional já pode ser considerado uma alternativa melhor, do meu ponto de vista. É um desafio enorme trazer essa provocação para a moda. Mas é na moda que eu vejo a causa tomar a proporção que ela merece."
Ela diz que procura criar roupas que sejam vitalícias. "São peças pensadas para durar muito e ser usadas em diferentes ocasiões. Inclusive, a gente recebe as peças de volta depois e encaminha para a reciclagem. Tudo se transforma".
Uma questão importante é que toda fibra sintética solta microplástico. Mas pouca gente sabe em qual parte do processo ele se desprende: quando colocamos na máquina de lavar. É no momento da centrifugação que as partículas se soltam e acabam indo parar nos oceanos. "Parte do processo de conscientização é explicar a forma correta de lavar as peças: se passar uma água no chuveiro na hora do banho, não precisa nem de sabão", afirma.
Uma rede em prol da economia circular
Apesar da existência de pontos de coleta, muitos pescadores ainda encontram dificuldades na hora de descartar as redes sem uso. É aí que entra, mais uma vez, o trabalho artesanal da Reorder: "Recebo ligações e mensagens de várias pessoas dizendo onde tem rede", conta Isabela, que recolhe e encaminha o material para uma empresa de reciclagem em São Paulo. Essa matéria-prima é transformada em plástico para os cabides da marca e também é utilizada pela indústria automobilística e outros setores que trabalham com plástico rígido.
Os retalhos das redes que sobram são costurados por um redeiro aposentado (profissional que costura as redes de pesca industrial) para se transformarem em embalagens para os produtos. Com esse trabalho, já foram retiradas 15 toneladas de lixo do litoral brasileiro.
"No Brasil é o que se consegue fazer hoje, mas nosso sonho é fabricar o tecido com as redes daqui", diz Isabela. Para alcançá-lo, ela segue fazendo parte de todos os elos da cadeia, desde falar com os pescadores e entender as questões que os cercam até pegar as redes, encaminhar para a reciclagem, desenvolver produtos, criar modelagens e seguir pesquisando novas matérias-primas.
"Temos uma visão otimista para o problema dos oceanos, porque existem inúmeras soluções. Nosso propósito é encontrá-las e incentivar as pessoas de todas as maneiras possíveis. Nosso papel é unir as pontas, ser o agente transformador. Fazer uma verdadeira costura para que isso aconteça na prática."
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