Alimentação, trabalho escravo e desmatamento: como tudo isso se relaciona?
O ano é 2022, e o Brasil ainda enfrenta dificuldades para pôr fim ao trabalho análogo à escravidão. Somente no ano passado, mais de 1,9 mil trabalhadores brasileiros foram retirados de atividades que cerceavam sua liberdade e os colocavam em situações degradantes, com jornadas exaustivas e até servidão por dívidas. O número de resgates foi o maior desde 2013, quando foram libertadas 2,8 mil pessoas, e 106% acima do registrado em 2020. Em 89% dos casos, apontam dados do Ministério do Trabalho e Previdência, os trabalhadores atuavam em áreas rurais.
Em meio a essas propriedades fiscalizadas, trabalho escravo, desmatamento e alimentação se conectam. Na Amazônia, região líder em desmatamento no país, a queima ilegal abre espaço para atividades que levam, em parte, à produção do alimento que chegará ao consumidor no país ou exterior.
Que atividades econômicas seriam essas ligadas ao desmatamento? Como isso se relaciona com o meio rural e vítimas do trabalho escravo? E como acabar com essa combinação? Ecoa ouviu especialistas para responder essas e outras questões sobre o assunto.
Como o desmatamento se relaciona com a exploração de mão de obra escrava?
Coordenadora Nacional de Erradicação ao Trabalho Escravo e Enfrentamento do Tráfico de Pessoas (Conaete) do Ministério Público do Trabalho (MPT), a procuradora Lys Sobral Cardoso explica que, de modo geral, há uma conexão entre a exploração do sistema de riquezas do Brasil e do trabalho alheio. Quem comete crime na exploração de uma atividade econômica muitas vezes se envolve com problemas trabalhistas e, às vezes, até em situações de trabalho escravo, diz ela.
Segundo Lys, hoje, na Amazônia, é comum que onde haja desmatamento, madeireiras e garimpos ilegais também exista trabalho em condições análogas à escravidão. "Só não chega a 90% dos casos porque às vezes não conseguimos encontrar o trabalho escravo — ou ele já acabou ou essa frente está em outro lugar. Mas em grande parte dos lugares em que conseguimos concluir a fiscalização tem trabalho escravo na realização dessas atividades", relata.
Na prática, muitas dessas áreas passam pela derrubada ilegal da vegetação usando mão de obra de vítimas do trabalho escravo. A continuidade das atividades ali também é sustentada por esses trabalhadores. "É preciso lembrar que o desmatamento é um meio, não um fim. Olhar só para o desmatamento é como medir a febre e não descobrir o que a causou", frisa o ambientalista João Meirelles Filho, diretor geral do Instituto Peabiru.
Esses dois problemas - desmatamento e trabalho escravo - envolvem a alimentação de que maneira?
Por meio da atividade realizada nessas propriedades. Conforme a procuradora do MPT, a mais comum é a criação de gado bovino. A relação é tão forte, comenta ela, que essa atividade está presente nos registros do MPT desde 1995, quando foi formalizado o combate ao trabalho escravo no Brasil. Além da pecuária, há casos envolvendo extração ilegal de madeira, carvão e minérios, entre outras situações. "Mas a predominância mesmo é da criação de gado. E, para que isso aconteça, já houve um desmatamento antes", pontua Lys.
Ela reforça que o problema não está apenas nos estados do Norte e Nordeste: ele também envolve outros biomas e cultivos. "Em 2021, por exemplo, a recordista de trabalho escravo foi a cafeicultura. Para explorar o café, antes vem o corte da vegetação. O mesmo para a soja", complementa.
O diretor geral do Instituto Peabiru analisa que essa relação com trabalho escravo e desmatamento aumenta ainda mais o impacto negativo dessas atividades, em especial a pecuária. Ele assinala que a produção de gado está presente em todos os estados brasileiros — as cidades com mais desmatamento e pecuária na Amazônia são as com mais problemas de segurança e desigualdade social. "Falar da pecuária ainda é um tabu no Brasil. Claro que algumas propriedades têm alto rendimento, são estruturadas, mas isso é apenas 5%", ressalta Meirelles Filho.
Como o trabalho escravo se conecta com o ambiente rural?
Direitos assegurados pela Constituição Federal, como moradia e alimentação, são atravessados no Brasil pela ausência da reforma agrária, salienta a procuradora do MPT. Por isso, ela avalia que a concentração de terras é um fator determinante para a permanência do trabalho escravo no país. "Os meios de produção ficam concentrados nas mãos de pouquíssimos no meio rural. Com isso, existe uma expulsão do homem e da mulher do campo para a cidade. É uma total falta de estrutura", diz.
Quem é resgatado do trabalho escravo no meio rural, ambiente no qual esse problema é predominante, destaca Lys, também costuma já ser dessa região. Até mesmo os resgates na área urbana envolvem ex-moradores dessas regiões, que não encontram melhores oportunidades onde nasceram. "O relato é que o trabalhador saiu do interior porque não tinha nada para ele ali", observa.
Para a procuradora, além da má distribuição de terras, a predominância do trabalho escravo fora dos núcleos urbanos se deve ainda a fatores como o isolamento geográfico e vulnerabilidade socioeconômica das vítimas. "São muitas pessoas alijadas do acesso à terra, aos meios de produção, à educação", acrescenta. Hoje, a maior parte dos resgatados em situação de trabalho análogo à escravidão vem dos estados do Maranhão e Piauí. Já o Pará é o estado onde mais casos são identificados pelo MPT.
Qual o caminho para reverter essa problemática envolvendo desmatamento, trabalho escravo e alimentação?
João Meirelles Filho avalia que, embora muitas pessoas não relacionem o que elas têm no prato com a devastação de biomas, mudanças climáticas, trabalho escravo e desrespeito a povos originários, é preciso começar a olhar de maneira mais consciente para o que se consome. Ao mesmo tempo, é necessário mudar o foco das ações, ouvindo vozes locais e atuando pela garantia da segurança alimentar da população.
Conforme a procuradora Lys Sobral Cardoso, o MPT tem projetos que buscam esclarecer a população sobre seus direitos, mas isso não tem sido suficiente para erradicar o trabalho escravo. Por isso, um dos maiores gargalos, o pós-resgate, é alvo de uma iniciativa piloto desenvolvida pelo órgão em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA). O projeto prevê a criação de empreendimentos coletivos e solidários voltados à agricultura familiar, uma mudança que se compreendeu como necessária após diagnóstico feito pelas instituições. "Esses empreendimentos favorecem a sustentabilidade do ponto de vista ambiental, do trabalho, da prevenção do trabalho infantil, da segurança alimentar", argumenta.
Para quem está na ponta do consumo, a procuradora recomenda a busca pela informação antes de optar por um produto ou outro. Uma postura mais sustentável depende de uma consciência coletiva. "Se a pessoa puder escolher, que priorize quem tem mais compromisso com o que produz", defende.
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