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Projeto usa música no tratamento de covid e vítimas de Petrópolis

A residente em psicologia Amanda Francolino realiza videochamada entre paciente e sua família - Arquivo pessoal
A residente em psicologia Amanda Francolino realiza videochamada entre paciente e sua família Imagem: Arquivo pessoal

Danilo Casaletti

Da Republica.org

23/03/2022 06h00

Para além de todos os problemas de saúde relacionados com a covid-19, há algo de muito cruel nessa doença que, há pouco mais de dois anos, virou o mundo de cabeça para baixo: a solidão. Enfermarias e UTIs (ou CTIs) dedicadas ao tratamento de pacientes não são abertos à visita de familiares ou amigos dos infectados pelo vírus.

O doente, além de si próprio, pode contar apenas com a companhia de médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, entre outros profissionais de saúde. Uma das soluções adotadas por muitos hospitais, sobretudo nos períodos de alta ocupação dos leitos, foi adotar a conversa com familiares por meio de videochamadas, com o auxílio de um funcionário.

Entretanto, há aqueles enfermos que, devido à gravidade da infecção, estão sedados ou inconscientes. É justamente para eles que o projeto Toma Essa Canção Como Um Beijo, parceria interinstitucional entre o curso de Musicoterapia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), na capital fluminense, administrado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), dedica seu acolhimento.

Tomando emprestado como título um verso da canção Menino do Rio, de Caetano Veloso, o Toma Essa Canção Como Um Beijo foi criado em junho de 2021 e implementado em setembro do mesmo ano na UTI do hospital. A ideia é levar aos pacientes em estado grave recados de voz e músicas que tenham sido importantes na sua vida ou na sua relação com os familiares.

Ao todo, 45 famílias foram atendidas — a possibilidade de usar as gravações é apenas sugerida, não uma obrigação.

Os efeitos da música

A responsável pelo projeto de extensão é a professora do curso de Musicoterapia da UFRJ e doutora em psicologia clínica Bianca Bruno Bárbara. "A intenção, em um momento em que as pessoas estavam ameaças e sensibilizadas pela possibilidade de perda real de um parente para a covid, é fazer com que a voz, essa marca tão subjetiva que nos remete ao ambiente familiar, pudesse fazer com que os parentes estivessem presentes de alguma forma", afirma.

A professora esclarece, em linhas gerais, como a música age no ser humano: "A música tem, além do efeito sobre a fisiologia do corpo, influência sobre as emoções. Ela é um conjunto de sons, e o som tem uma presença na história de vida do sujeito desde sempre. Somos marcados pela sonoridade. Em um primeiro momento, por meio da mãe e, depois, do universo que nos rodeia. Então, a música carrega marcas afetivas dessas impressões".

Na divisão de tarefas entre as instituições, coube aos extensionistas do curso de Musicoterapia, supervisionados pelas professoras Bianca e Marly Chagas, a função de entrar em contato com os familiares dos pacientes, explicar o projeto, receber os áudios e editar o conteúdo — muitas vezes, os familiares pedem a música na voz de determinado intérprete. Como É Grande Meu Amor Por Você, de Roberto e Erasmo Carlos, é uma das preferidas.

O arquivo, então, é enviado ao hospital para que uma residente de psicologia possa executá-lo, por meio de um celular, no leito do enfermo.

"Temos percebido que o projeto funciona tanto para a família que envia o recado — como uma possibilidade de movê-la na intenção de dizer ainda o que precisa ser dito diante de uma ameaça de morte — quanto para quem escuta, no sentido de convocação à vida e da facilitação do processo de melhora", diz Bianca.

De acordo com a professora, existem estudos que mostram que a audição permanece ativa, ao menos por um tempo, mesmo quando o paciente tem seu nível de consciência rebaixado por seu estado clínico ou sedação.

Nesses casos, não há — explica Bianca — o registro mnêmico, ou seja, o paciente não consegue se lembrar exatamente do que escutou, mas ocorre o processamento do estímulo sonoro ou musical, apesar do coma.

As observações, todas empíricas, pois se trata de um projeto de extensão e não de pesquisa, trazem outra questão importante. Segundo o relato de Bianca, em quadros irreversíveis, essa exposição a uma voz familiar facilita o processo de morte.

Humanização da saúde

O professor Vinicius Anciães Darriba, do Instituto de Psicologia da UERJ e coordenador da residência em Psicologia no Pedro Ernesto, afirma que desde o começo da pandemia o hospital se preocupou com a barreira que as questões sanitárias trazidas pela covid impuseram aos pacientes.

O hospital passou a oferecer a eles a chamada por vídeo, para que pudessem falar com os familiares. E, depois, procurados pela UFRJ, viram a possibilidade de oferecer um conforto para os pacientes mais graves.

"Tanto do lado da professora Bianca quanto do nosso há essa aposta de que ele é benéfico aos doentes entubados. E, mais do que isso, percebemos que essa abordagem gera efeito no ambiente hospitalar. O projeto lembra aos demais pacientes e à equipe que o atendido tem uma história fora do hospital."

Darriba aposta na humanização dentro da saúde — ele coordena um setor chamado Urgências Subjetivas. "Uma ação humanizadora transforma um ambiente de um hospital, que, em geral, é muito difícil, sobretudo em uma CTI", diz.

Para a residente de psicologia, é mais que um projeto

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A residente em psicologia Amanda Francolino Rezende de Sant'anna
Imagem: Arquivo pessoal

A residente em psicologia Amanda Francolino Rezende de Sant'anna, de 25 anos, entrou no hospital para fazer sua especialização duas semanas antes de a covid estourar no Brasil. Em um primeiro momento, a direção da instituição decidiu afastar os residentes.

Quando o retorno foi permitido, após um mês, Amanda foi uma das responsáveis por organizar as chamadas de vídeo entre os pacientes com covid e seus amigos e familiares. Para isso, utilizou um celular doado ao hospital.

Em setembro do ano passado, ela passou a atuar no projeto Toma Essa Canção Como Um Beijo. "É uma experiência que jamais será reproduzida. É um projeto sensível. Todo mundo é tocado por ele."

Dos 45 pacientes que participaram do projeto, 41 morreram. "Então, de fato, foi o momento de o familiar endereçar uma última mensagem. Me sinto como uma mensageira da morte. É uma posição difícil, mas me sinto honrada", conta.

Entre os sobreviventes, Amanda teve a oportunidade de conversar com uma paciente, de 82 anos, por telefone. Já em casa, a mulher, mesmo recuperada, ainda tinha algumas lembranças confusas por conta do forte processo de sedação pelo qual passou.

O filho contou à psicóloga que uma das lembranças da mãe era um monte de gente de branco que tocava música para ela no CTI. "Depois, ela me falou que nem disso se lembrava. Ela me agradeceu, não me reconheceu, mas havia um carinho nela. Algo ficou. Ela disse: 'Eu não lembro, mas deve ter me ajudado'. Eu também acredito nessa possibilidade. Era o filho dela cantando à beira-leito", diz.

Com controle da pandemia, projeto poderá ser reformulado

Com o avanço da vacinação e a queda do número de casos graves de infecção por covid, ao menos neste momento — cidades como Rio de Janeiro e São Paulo já flexibilizaram até o uso de máscara — o projeto Toma Essa Canção Como um Beijo pode adquirir novos formatos. "Se entendermos que a canção se empresta como um modo de dizer diante das urgências subjetivas, poderemos vê-las em alguns cenários que não apenas na pandemia de covid, que foi o originário do projeto", afirma Bianca.

Na recente tragédia ocorrida em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, ele também foi usado. A professora Marly Chagas, da UFRJ, promoveu rodas de conversas com os familiares que desejavam ser escutados pelos pacientes internados.

Em abril, uma reunião será feita entre as equipes para decidir o futuro do programa. Uma das propostas é acompanhar as famílias nas visitas aos pacientes graves, em internações por diferentes motivos, e convidá-las a cantar para esse familiar.

Teoricamente, o Toma Essa Canção Como Um Beijo, ou a ideia de levar uma canção ou um áudio da família para um paciente, é algo simples de ser feito e, portanto, de fácil replicação em outros hospitais. Porém, a professora Bianca faz um alerta. Esse tipo de recurso só deve ser executado por profissionais qualificados.

"Há uma impressão apressada e equivocada de que a música sempre faz bem. Porém, ela pode ter efeitos danosos quando mal utilizada. Há quadros neurológicos, em indivíduos com pré-disposição, que são desencadeados por sons", explica a professora, citando, por exemplo, a epilepsia.

É preciso também cuidar da carga emocional que a exposição de um indivíduo à música pode gerar. "Algumas vezes, para o tanto de emoção que a música pode disparar, faz-se necessário um trato adequado. O musicoterapeuta é responsável pelo quanto de afeto a música mobiliza e está preparado para manejar seus efeitos subjetivos."

Esta reportagem foi desenvolvida em parceria com a Republica.org, organização social apartidária e não corporativa que se dedica a contribuir para a melhoria do serviço público no Brasil, em todas as esferas de governo.