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Educação laica: como religiões devem ser tratadas nas escolas públicas?

Temática da religião em espaços públicos, como escolas mantidas por governos e municípios, segue gerando discussão - Wavebreakmedia/ iStock
Temática da religião em espaços públicos, como escolas mantidas por governos e municípios, segue gerando discussão Imagem: Wavebreakmedia/ iStock

Antoniele Luciano

Colaboração para Ecoa

31/05/2022 06h00

A noção de estado laico no Brasil não é recente. A separação oficial entre instituições religiosas e o Estado ocorreu há mais de 130 anos no país, motivada pela Proclamação da República. Mesmo assim, a temática da religião em espaços públicos, como escolas mantidas por governos e municípios, ainda segue gerando discussão. Recentemente, por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) declarou inconstitucional uma lei municipal que obrigava o estudo da Bíblia em escolas de Barretos, no interior do estado. O órgão entendeu que a iniciativa violava a laicidade do estado e a separação de poderes.

Segundo a decisão do TJ-SP, a legislação, aprovada em 2019, necessitava de legalidade porque buscava impor o estudo da Bíblia, texto originário de uma única crença, a alunos que poderiam ser de famílias de outras religiões ou de famílias que não têm crença alguma.

De acordo com a Constituição Federal, sendo o Brasil um estado laico, a educação oferecida em instituições públicas também deve respeitar essa laicidade. É possível tornar, no entanto, compatível o caráter laico do estado com o ensino religioso ofertado nas escolas públicas? Como deve ser o ensino laico na prática? E qual a relação entre educação laica e o combate à intolerância religiosa? Ecoa ouviu especialistas para responder essas e outras questões sobre o assunto.

O que é educação laica?

Coordenador do Observatório da Laicidade na Educação (OLÉ), entidade ligada à Universidade Federal Fluminense (UFF), o professor José Antônio Sepulveda explica que, na concepção básica de laicidade, o Estado seria responsável pelo espaço público e as Igrejas pelo espaço privado. Nesse espaço público, todos conviveriam a partir de uma lei maior, a Constituição. Através dessa separação, tudo o que fosse vinculado a religiões deveria ser retirado do espaço público.

"E isso vai repercutindo, se desdobrando nas várias manifestações da sociedade civil", diz Sepulveda, ao pontuar que, nas escolas públicas, a ideia de laicidade não é diferente. "A educação laica é a educação que não é baseada em argumentos ou dogmas religiosos, mas em regras do campo científico e estabelecidas pelo espaço público", define o professor.

Trata-se de um ensino que não apresenta qualquer viés ou tendência religiosos, mas o amplo respeito a toda crença ou não crença, completa o presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção do Paraná, Sandro Gibran. "Se a criança e os pais forem ateus, também não pode ocorrer qualquer desrespeito a isso. A escola laica deve respeitar inclusive a possibilidade de não crer", salienta.

E nas escolas privadas, como é a questão da laicidade?

Gibran observa que, no caso da rede privada de ensino, é possível que os colégios sejam confessionais, isto é, sigam uma determinada confissão religiosa. Nessas escolas, a gestão costuma ser feita por religiosos. Como se tratam de instituições particulares, compreende-se que os pais, por terem condições socioeconômicas para isso, optaram pelo modelo confessional. "É direito dos pais escolherem isso. Muitas vezes, a condição socioeconômica impede de ter opções. Mas, quando isso não é um empecilho, é possível escolher entre escolas particulares confessionais e não confessionais, de ensino laical", assinala o advogado.

O fato, no entanto, de escolas privadas poderem oferecer ensino religioso confessional não significa que possam abandonar conceitos científicos para introduzir dogmas religiosos no lugar deles, destaca Sepulveda. "Elas podem usar a religião como instrumento de coesão interna, mas não abandonar, por exemplo, o evolucionismo e colocar o criacionismo no lugar", comenta.

Por que a educação laica é importante no ensino público?

O coordenador do OLÉ ressalta que essa laicidade evita que os estudantes sejam submetidos a ordenamentos de crenças das quais não fazem parte, uma vez que a escola pública não teria condições de contemplar todas as religiões existentes no país. Ao mesmo tempo, eles têm seus valores respeitados. A laicidade na educação, defende o professor, é um instrumento para garantir o direito à liberdade religiosa. "Não tem nada a ver com ateísmo. É um mecanismo de proteção às religiões", reforça.

E como fica a educação laica com o ensino religioso nas escolas públicas?

Para Sepulveda, esse é mais um campo cheio de contradições. Isso porque, embora o ensino religioso esteja previsto na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a oferta da disciplina é obrigatória para as escolas, mas facultativa aos alunos. Ao mesmo tempo, a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) legitimou o ensino religioso como uma área de conhecimento. "Isso não deveria acontecer porque não é uma matéria obrigatória para o aluno", sustenta o professor.

Conforme o coordenador do OLÉ, o observatório é contrário à oferta de ensino religioso nas escolas públicas em decorrência, entre outros fatores, da dificuldade que professores teriam em contemplar todas as crenças no currículo escolar. "O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mapeou mais de 100 religiões em todo o Brasil. Como seria falar de todas as religiões, de diferentes matrizes, monoteístas, politeístas, religiões sem deuses?", questiona.

Sepulveda acredita que esse seja um dos debates mais antigos e acalorados que existem no Brasil, uma vez que defensores do ensino religioso veem a medida como uma alternativa para ajudar na resolução de problemas de indisciplina e entre alunos. Para o professor, contudo, a realidade das escolas é outra. "Na prática, pelas pesquisas que fazemos, isso nunca resolveu nenhum desses problemas. O ensino religioso existe desde 1988 oficialmente na Constituição. De 1988 para cá, a violência aumentou muito mais nas escolas", comenta.

No Rio de Janeiro, o ensino religioso, apesar de facultativo aos estudantes, é confessional nas escolas públicas. As aulas devem ser ministradas por professores referendados por instituições religiosas. Essa oferta chegou a ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade votada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017, sendo considerada compatível com o estado laico, por seis votos a cinco. Em 2019, uma lei estadual foi sancionada permitindo que estudantes que não quisessem assistir às aulas de ensino religioso confessional pudessem ter reforço escolar no mesmo horário.

Para o coordenador do OLÉ, nesse cenário, o ensino religioso confessional pode alimentar a intolerância religiosa. "Não só a externa, mas dentro da própria estrutura escolar. Existe uma lei, a 10.639, que regulamenta que escolas façam trabalhos a partir da cultura africana, e muitas vezes isso é dificultado nas escolas por causa do racismo religioso que, de certa forma, é reforçado pelo ensino religioso confessional", afirma ele, ao argumentar que a religião deve ser discutida como fenômeno social nos demais componentes curriculares.

"Não tem como se falar em Brasil Colônia e não falar dos jesuítas e do papel da Igreja, por exemplo, ou das guerras religiosas na Europa e a ascensão protestante. Isso já existe nas aulas de história, sociologia. Por que criar outra disciplina?", diz.

A educação laica pode ajudar no combate à intolerância religiosa?

Sim. Para Gibran, isso é possível a partir do próprio ensino sobre diferentes religiões, a título de informação e não de proselitismo, ou seja, na tentativa de converter outras pessoas. "Informação nunca é demais. Quando você esclarece, informa, a chance de aceitação do outro é mais fácil. Se vivemos em uma sociedade tão intolerante, em grande parte é por desconhecer a realidade do outro. E a informação traz empatia", defende.

Ele aponta que um caminho para vencer a intolerância religiosa começa pela preparação de professores para um trabalho baseado nas semelhanças entre as crenças. "Quando compreendemos que existem mais semelhanças do que diferenças, talvez essa hostilidade com o diferente deixe de existir. É uma preparação no sentido de apaziguar ânimos dos que vêm com preconceitos de casa", enfatiza o presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-PR.

Para Sepulveda, a laicidade é um importante pilar da democracia e que deve ser alimentado cotidianamente, inclusive na educação. "É um processo, assim como a democracia, que temos de lembrar sempre. Se não, as pessoas esquecem o que é e acabam transformando no que não é."

Ele assinala que casos de ataques à liberdade religiosa no ensino podem ser levados ao OLÉ por meio da página do observatório. As situações são orientadas e encaminhadas às autoridades responsáveis.