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Internação involuntária: como funciona a ação da 'cracolândia'?

Rua Helvétia voltou a ser ocupada pelos usuários da cracolândia, em São Paulo, na segunda-feira (23) - WAGNER VILAS/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO
Rua Helvétia voltou a ser ocupada pelos usuários da cracolândia, em São Paulo, na segunda-feira (23) Imagem: WAGNER VILAS/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO

Antoniele Luciano

Colaboração para Ecoa, de Curitiba (PR).

21/06/2022 06h00

Anunciado no início do mês pela Prefeitura de São Paulo, o internamento involuntário de 22 dependentes químicos que vivem na região da "cracolândia", no centro da capital paulista, se tornou alvo de inquérito do Ministério Público. O órgão está investigando não só como essas internações ocorreram, mas também qual a estrutura criada para tratar os pacientes levados para desintoxicação.

Polêmica, a medida já havia sido adotada por gestões municipais anteriores. Essa intervenção, realizada contra a vontade do paciente, é uma das três formas de internamento previstas na nova Lei de Drogas, a Lei 13.840/19, sancionada em 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro.

Como esse tipo de internamento funciona? É possível que essa medida traga benefícios para dependentes químicos como os que vivem na "cracolândia"? Como evitar que essas internações se convertam em ações higienistas? Ecoa ouviu especialistas para responder essas e outras questões sobre o assunto.

O que são internações involuntárias para dependentes químicos?

A legislação brasileira prevê três tipos de internamento: o voluntário, quando há a concordância do paciente; o involuntário, quando há discordância do paciente, mas concordância assinada por um terceiro; e o compulsório, determinado pela Justiça. "No caso do internamento involuntário, com a discordância do paciente, as alternativas são alguém da família concordar por ele e, não havendo família conhecida, alguém da saúde ou assistência social concordar por ele", explica o promotor de Justiça de Direitos Humanos e Saúde Pública, Arthur Pinto Filho, do Ministério Público de São Paulo (MP-SP).

Conforme o representante do MP-SP, não basta apenas que esse consentimento para internar um paciente seja expresso por um familiar ou responsável. É preciso ainda que haja um laudo médico minucioso explicando as causas da internação e como se deram as tentativas anteriores de tratamento. Uma vez ocorrido o internamento, também é obrigatória a comunicação da medida ao Ministério Público, para que não se caracterize cárcere privado. Essas internações não podem ultrapassar 90 dias.

No caso dos internamentos envolvendo a "cracolândia", o MP-SP não recebeu a informação sobre a entrada dos pacientes no Hospital Municipal Bela Vista. A situação ainda está sendo apurada.

Que critérios estão envolvidos na internação involuntária?

Para que haja internação desse tipo, é necessário que o paciente preencha requisitos da chamada involuntariedade e que podem envolver transtornos mentais no geral, não somente relacionados à dependência química, observa a médica assistente da Enfermaria de Comportamento Impulsivo do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo (USP), Livia Beraldo de Lima.

Nesses casos, assinala ela, o paciente pode oferecer risco para si e para terceiros e apresentar discernimento e autonomia alterados, isto é, ter a capacidade de tomar decisões afetada. "Estamos pensando na dependência química como um transtorno mental, não uso recreacional ou esporádico. É quando a pessoa perde a liberdade de escolha, usa a droga apesar de todos os problemas relacionados à substância", observa a psiquiatra, ao lembrar que a Lei 10.216, de 2001, já versava sobre a possibilidade de internamentos involuntários para casos de transtornos mentais.

Ela salienta que cada caso necessita passar por uma avaliação minuciosa de uma equipe médica e que nem todo dependente químico pode ser enquadrado nesse tipo de medida. "Não é todo mundo que será internado contra a própria vontade. É uma medida extrema, que precisa de cautela", enfatiza.

Recorrer a esse tipo de medida apresenta eficácia?

Para a médica do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, trata-se de um processo difícil, mas que pode resultar em benefícios para a saúde física e mental do paciente a depender da situação. O problema, enfatiza Lívia, não está na existência da lei que permite internações involuntárias, mas na forma como essa intervenção é praticada. "O que não se pode é banalizar essa internação", diz.

Ela argumenta que, para ter um tratamento eficiente, é preciso traçar um plano para além das medidas de desintoxicação. "A dependência química é uma doença multifatorial, temos que pensar no fator orgânico, mas também no meio que a pessoa está inserida. Se tiro todo mundo da 'cracolândia', depois o que eu vou oferecer em termos de tratamento, saúde, trabalho, moradia para esse indivíduo? A questão do tratamento vai para além da substância", reforça.

O promotor de Justiça do MP-SP avalia que operações anteriores feitas pelo poder público que contaram com esse tipo de internação foram ineficazes para lidar com o problema das drogas na "cracolândia", resultando em perda de esforço e dinheiro público. Ele ressalta que 90 dias, prazo máximo previsto para o internamento involuntário, é insuficiente para tratar a dependência química. "Todos os psiquiatras sabem que em 90 dias não se faz tratamento para uso moderado de cocaína e craque. A lei diz que assim que desintoxicar, o paciente deve ter alta, para que seja reinserido na sociedade. Mas para isso, precisamos ter um acompanhamento individualizado, acesso à cultura, educação, moradia, renda", destaca.

Pinto Filho aponta que, sem esse cuidado, dependentes químicos retirados da "cracolândia"voltam para o mesmo lugar após receberem alta, enquanto as operações na região prendem somente microtraficantes. "Tem sido assim desde 2012, é algo que se repete. A Prefeitura fala como se fosse resolver o problema da região com internação involuntária, mas isso é falso", defende.

Que cuidados internações involuntárias demandam?

A internação involuntária não deve ser usada como política higienista ou com finalidade para reverter ganhos para determinadas unidades de saúde, como clínicas que não passam por avaliação, alerta Lívia. Para evitar isso, além da avaliação médica de cada caso, os centros de internação devem apresentar estrutura e profissionais adequados.

Ao mesmo tempo, a médica chama atenção para os serviços que serão oferecidos ao paciente. Passado o período de desintoxicação, há a preparação para alta considerando as diferentes realidades desses sujeitos. "É muito simplista falar apenas em desintoxicação. É importante se preocupar onde ele será internado. Não é só deixá-lo isolado do meio. Quais os tratamentos que serão oferecidos? Terei psicólogo, educador físico, assistente social ajudando na questão social?", questiona.

E qual o caminho para tratar a dependência química na região da "cracolândia"?

A médica do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas lembra que já existem instrumentos importantes que atuam nessa área, como o Consultório na Rua e o Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (CRATOD). No entanto, Lívia enxerga como essencial a existência de um planejamento amplo e com olhar voltado às necessidades dos dependentes. "Isso é importante porque sabemos que, de governos em governos, existe uma ação com os pacientes que não olha muito para o dependente químico", lamenta.

O promotor do MP-SP, por sua vez, acredita que políticas públicas possam modificar esse cenário a partir de um atendimento capaz de estabelecer contatos e vínculos de confiança com o público da "cracolândia", 24 horas por dia, sete dias por semana. "O caminho é uma política de estado que não coloque a polícia como posto de comando, mas como retaguarda. Quem tem que ficar no posto de comando é a assistência social e a saúde", completa.