'Ninguém volta igual da África': Gilberto Gil fala sobre o DNA da família
Gilberto Gil, 79, conta a quem perguntar. A mãe, dona Claudina Passos Gil Moreira, identificou seu gosto pela música quando o filho, aos 2 anos, dizia querer ser "musgueiro". Não foi difícil para ela identificar o que ele queria ser: músico. Primeiro, mandou o menino estudar acordeão. Depois, ela deu o dinheiro para o primeiro violão, que o jovem sanfoneiro de 16 anos não foi muito longe para adquirir. Achou um na filial da Mesbla em Salvador, onde a família morava. Era 1958, e o fã de Luiz Gonzaga acabara de se enebriar pelo jeito de João Gilberto fazer samba.
Gil conta esta e outras histórias no vídeo acima, "Origens: A Música no DNA da família Gil", produzido por MOV, a produtora de vídeos do UOL, em parceria com ECOA, a plataforma do UOL por um mundo melhor, e o Núcleo de Diversidade.
Antes de gravar o primeiro disco em que tratava explicitamente da condição de ser negro, Gil foi muito mais longe: em 1977, viajou a Nigéria e Benin, distantes mais de 5 mil km da capital baiana. "Ninguém volta igual da África. A gente retorna querendo se aproximar daquela filigrana, daquela sagacidade rítmica típica do mundo africano", conta ele em seu estúdio no Rio. A convite de ECOA, o músico, próximo de completar 80 anos, topou embarcar em outra viagem: fez um teste de DNA que mapeia a ancestralidade genética e indica os locais prováveis de onde vieram seus antepassados. E o que ele mostrou? Hoje, a inspiração para "Refavela", 45 anos após seu lançamento, soa a uma premonição do reencontro de Gil e suas origens.
O preto quando se arranca
Não era a primeira vez de Gil na África. Anos antes, ele havia ido a Angola, onde, segundo conta, pensou, "É daqui que vêm todos esses como nós, que somos de origem negra lá no Brasil". Mas na Nigéria foi diferente.
Lá, ele viu um continente inteiro debruçado sobre o Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana, que recebeu cerca de 17 mil artistas de 56 países, entre africanos e os da diáspora africana (do Brasil, de Gil, aos Estados Unidos, de Stevie Wonder).
A construção de acomodação para toda essa gente, mais tarde usada para aliviar a pressão habitacional em Lagos, levou Gil a ver paralelo com os prédios do BNH (Banco Nacional da Habitação) erguidos aqui no Brasil na época. Nascia "Refavela" (A refavela / Revela o salto / Que o preto pobre tenta dar / Quando se arranca / Do seu barraco / Prum bloco do BNH), música título do disco que ainda tinha "Ilê Ayê", "Babá Alapalá" e "Balafon".
"Foi o primeiro disco que eu resolvi tratar diretamente da questão da origem negra, da negritude, os impactos da negritude na cidadania e na compreensão da visão da dimensão existencial. Eu diria que as modificações [desta viagem] são até mais nítidas na música do do que no campo do discurso. Notas musicais são como palavras, traduzem coisas e projetam imagens, tanto quanto os versos das letras das canções", conta Gil.
O homem que é muitos
Neste sentido, o resultado do teste comprova algo que Gil já sabia por relatos históricos de família e a configuração básica da população brasileira, afinal foram enviados para a Bahia africanos da chamada Costa da Mina, região que compreendia Benim, Togo e Nigéria.
"É uma espécie de resposta positiva via dado científico, que é a comprovação do código genético. Sempre achei que eu era racialmente e culturalmente múltiplo. Sempre achei que eu não sou um, que eu sou muitos."
A presença de material genético da Polônia e Irlanda surpreenderam mais a esposa, a empresária Flora Gil, e os filhos, como a chef de cozinha Bela Gil. Por ora, não são descobertas que façam Gil puxar o violão. "Talvez um dia eu fique curioso e interessado em especular um pouco em termos poéticos e musicais sobre as minhas origens irlandesa e polonesa."
Diante da hipótese de a descoberta destas raízes mais nítidas em solo africano, europeu e americano dar novo significado a alguma de suas composições, Gil prefere deixar o tempo agir. "Essas novidades em termos de código genético são novas ainda para saber se terão impacto. Estou como os chineses, quando perguntados sobre a Revolução Francesa [1789]: 'É uma coisa muito recente para saber que impactos terá'", diz, para em seguida soltar uma gargalhada.
Alforriados
Além de Gil, Flora e outros filhos toparam fazer o teste, o que suscitou uma discussão sobre herança passada adiante na família. "Graças a Deus, eu casei com preto. O resultado dos nossos três filhos [Bem, Bela e José] não é parecido com o meu, mas parecidos com o nosso. Todos ali vão ter alguma coisa da África. Isso me dá muita alegria", comenta Flora. "É uma família do Brasil com a cara de muitas partes do mundo."
Filho de pais negros retintos, o músico se relacionou com mulheres brancas. Antes de Flora, Gil teve outros dois casamentos. Com Belina Aguiar (1938-2019), teve Nara e Marília. Com Sandra Gadelha, teve Pedro, Preta e Maria. Essa miscigenação e a fama, reflete, pouparam os filhos de episódios mais pesados de racismo.
"Numa sociedade que foi constituída e desenvolvida como a brasileira, a mistura, especialmente com os brancos, equivale um pouco sim a uma alforria mesmo. Equivale a uma espécie de branqueamento, idealizado um pouco pela sociedade brasileira e pelas elites brasileiras, que são basicamente de origem europeia."
A árvore genealógica da família de Gilberto Gil
Música no DNA da família Gil
Para além da herança africana, Gil enxerga transmitir outra herança adiante. "A música está no DNA da família Gil", afirma. A presença de quatro dos sete filhos vivos e três dos 12 netos na indústria fonográfica não o deixam mentir. Mas a consideração de Gil tem uma pitada de reflexão filosófica.
Para além das tendências inatas, que pudessem ter vindo da herança genética em si, as tais influências culturais vão criando novas camadas no que a gente chama de personalidade. A personalidade dos meus filhos, filhas, netos e netas se beneficiam dessa, digamos assim, influência por osmose, espiritual e transbiológica, para além da dimensão biológica. Eles são culturalmente herdeiros de alguma coisa que já que já foi medrada e cultivada."
Neste momento, a conversa se entrelaça com outro ponto abordado por Gil e que também tomou rumos filosóficos. Quando falava sobre a ida à Nigéria, ele relativizou o poder de eventos grandiosos exercerem grande mudança na vida das pessoas, pois, mesmo situações banais, apesar de seus impactos imperceptíveis e irrelevantes, modificam o que tocam. "Tudo muda a vida da gente. A única constante do universo é a mudança. É a única coisa que permanece no plano do eterno."
Aqui e Agora
Falando na cruel visita do tempo, o quase octogenário não desconversa quando o papo é finitude. Conta que já tentou recorrer a crenças religiosas para tentar compreender ou até mesmo antecipar alguma visão do que viria depois da morte. Antes de seguir, pausa para refletir por quê pensamos sobre o fim da vida:
Nós temos essa coisa de querer coagular a existência, que vai dando a nós esses momentos de refletir a possibilidade do estancamento desse fluxo permanente. É uma dessas formas de congelamento que temos para poder suportar a extraordinária e extrema elasticidade do existir. Sem poder recorrer a essas instâncias aglutinadoras de sentido e de significado, seria o enlouquecer absoluto por não sabermos onde estamos, o que somos, a que viemos, o que seremos."
Agora, diz, contenta-se com a incerteza ("Da mesma maneira que não sei como foi chegar até aqui, não sei o que será prosseguir depois daqui"). Mas, de um jeito que só ele sabe, dá sua receita de como prosseguir:
"Hoje em dia, eu apenas tento me dedicar a estar aqui agora", diz e recita os versos de "Aqui e Agora", outra música de "Refavela":
De onde o olho mira / Agora que o ouvido escuta/ o tempo que a voz não fala / mas que o coração tributa"
"O melhor lugar do mundo", continua a videomaker de MOV Raquel Arriola que conduzia as gravações.
"Aqui e Agora", confirma Gil, já puxando o violão para dedilhar a música.
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