Como a 'Refazenda' de Gilberto Gil virou salada na cozinha de Bela Gil
Flor Gil, 13, até tenta, mas as nuances das notas musicais não entram na cabeça de sua mãe, Bela, 34. "Ela fica: 'dó, dó, mãe'. O que que tem esse dó? Não sei", diverte-se a filha do ícone da música brasileira e recém-nomeado imortal da Academia Brasileira de Letras Gilberto Gil.
Chef de cozinha, ela vai na contramão da aptidão da família para as canções. Mas a influência do pai é inspiração para sua culinária, que ela exercita na cozinha do seu restaurante Camélia, na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. No cardápio, tem até prato com nome de música - peça lá uma salada Refazenda.
Junto de Gil, Bela conta esta e outras histórias no vídeo acima, "Origens: A Música no DNA da família Gil", produzido por MOV, a produtora de vídeos do UOL, em parceria com ECOA, a plataforma do UOL por um mundo melhor, e o Núcleo de Diversidade.
Enquanto a Refazenda de Gil leva abacateiro, tomate, mamão, tamarindo, a doce manga e guariroba, na de Bela vai peixinho da horta, beldroega, azedinha e castanha de baru - plantas alimentícias não convencionais, dificilmente encontradas no supermercado. Apesar de possuírem alto valor nutritivo, não são produzidas em larga escala na agricultura, que muitas vezes trata algumas de suas representantes como erva-daninhas.
Ela gosta de contar que abraçou de vez a gastronomia só após sua avó materna ensiná-la a fazer feijão pelo telefone quando estudava em Nova York. Com o pai, aprendeu a respeitar o tempo da natureza. A salada leva o nome de Refazenda, porque a música critica o ímpeto da agricultura de "padronizar e acelerar tudo", explica Bela.
No meio da conversa, começa a cantarolar baixinho, tentando se lembrar de uma estrofe:
"'Cedo, antes que o janeiro / Doce manga venha ser também'."
De repente, solta um grito:
"Manga! Eu sempre soube que manga era uma fruta de janeiro por causa dessa música. Ele traz essa sensação do respeito ao tempo da natureza. Isso é muito importante quando a gente fala de comida local, regional e sazonal. E essa salada representa tudo isso."
Ingredientes raiz
Nas receitas de Bela, também é comum encontrar quiabo, amendoim, azeite de dendê e óleos que são tradicionais em comunidades quilombolas, ribeirinhas e indígenas. Para ela, ingredientes que devem ser valorizados. "É uma culinária de resistência, que alimentou muitas pessoas e alforriou muitos negros, porque as escravas de ganho faziam quitutes para vender na rua e comprar sua liberdade. Não pensar nisso quando se come um acarajé é terrível".
Apesar de ter sido criada em um lar em que a cultura negra ecoava pela casa, Bela não se reconhecia como mulher negra até os 30 anos. O estalo veio durante as gravações do Bela Cozinha, um programa gastronômico que ela apresentava no canal GNT.
"A primeira vez que eu me percebi negra foi quando eu estava fazendo um programa com uma colega, que é negra. Eu falei: 'Porque vocês, mulheres negras'. E escreveram no Twitter: 'Alguém avisa a Bela que ela é negra, por favor'."
Filha de mãe branca, a empresária Flora Gil, e pai preto, ela não se sentia "no direito" de se ver desta forma, por não sofrer tanto preconceito quanto outras pessoas com a cor da pele mais escura. Depois do puxão de orelha das redes sociais, se aproximou do movimento negro e entendeu que há espaço para negros de pele clara.
A árvore genealógica da família de Gilberto Gil
Foi com a vontade de se conectar com origens apagadas que Bela topou o convite de ECOA. Junto da família, ela fez um exame de DNA que mapeia a ancestralidade genética e indica os locais prováveis de onde vieram seus antepassados.
"Eu sei em qual cidade meu bisavô [materno] nasceu e cresceu na Itália. Do lado do meu pai, é muito mais difícil. Se você quer saber da sua ascendência asiática, europeia é simples. Agora, preto, negro, da África? Do jeito que chegaram aqui mudaram de nome, viraram números, misturaram etnias e pessoas de diferentes lugares. E é como se fosse uma coisa só, mas não é. Esse apagamento de identidade e de cultura é muito cruel."
O resultado do teste a deixou ainda mais confortável. "Me deu até um certo alívio, digamos assim, no sentido de eu conseguir me reconhecer como uma mulher preta e de falar, 'Tá aí no meu DNA'."
O exame indica que 68,9% do material genético dela vem da Europa e 31,1%, da África. "Nigéria, Costa do Marfim, Benin e Angola. Nunca fui para estes países, mas quero muito conhecer."
Sem dó nem ré
Filha, irmã e tia de músicos, ela pega carona na conversa genética para definir sua relação com o mundo da música. "Eu sou o [gene] recessivo da música. Meu pai passou para filhos e netos essa musicalidade de uma maneira extraordinária, eu fui só um desvio de caminho."
Desvio curto, que desembocou em sua filha Flor. Entre uma tentativa e outra de ensinar escala musical à mãe, a menina de 13 anos já gravou com o avô canções como "No Norte da Saudade".
Por outro lado, Bela diz compartilhar com Gilberto Gil os problemas de memória. De tanto perder chaves, por exemplo, ela trocou a fechadura do apartamento por um leitor de impressões digitais. Ao tentar lembrar da infância, o que vem é o pai sentado na saleta compondo. "Quando chegava em casa e ouvia aquele violão tocando, me dava a sensação de 'Cheguei em casa'."
Quando o pai não estava em turnê, ela trocava com ele figurinhas sobre ioga, filosofia e alimentação saudável - durante anos, Gil foi macrobiótico, um regime alimentar que busca prolongar a vida por meio de uma dieta vegetariana e integral.
"Eu acho que foi muito satisfatório e gratificante para ele ver uma filha levando adiante um pouco dessa filosofia de olhar o alimento como uma forma de prevenção, tratamento e cura de doenças. Acho que a gente se conecta nesse lugar."
Origem é onde estão suas raízes
Não à toa, a cozinha tem posição central em seu apartamento na capital paulista, e as conversas ocorrem em volta do fogão. Da casa dos pais, levou para a sua a tradição das pizzas nas noites de domingo e o hábito de reunir amigos. Isso ela aprendeu com a mãe, Flora.
"Meu pai se casou várias vezes, teve muitos filhos, e minha mãe teve o papel fundamental de abraçar todo mundo e unir a família. Não tem essa de 'ah, porque você é filho de fulano'. Chega gente nova e já vira família."
Apesar de o teste de DNA trazer algumas respostas sobre as origens de seus antepassados, é esta noção de pertencimento que guia Bela quando ela reflete sobre ancestralidade.
"Origem, para mim, é cuidar da nossa raiz. Acho que é ela que te dá esse preenchimento. Se você tem uma raiz boa, muito forte e sabe de onde você veio, você sabe cuidar daquilo, sabe proteger aquilo e consegue crescer e florescer com muito mais facilidade", diz Bela, filha de Flora e mãe de Flor.
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