Topo

'Judeu-errante', 'bunda-de-mulata': artista debate nome racista de plantas

Giselle Beiguelman, criadora da mostra sobre termos preconceituosos dados às plantas - Denise Andrade/Divulgação
Giselle Beiguelman, criadora da mostra sobre termos preconceituosos dados às plantas Imagem: Denise Andrade/Divulgação

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo (SP)

13/07/2022 06h00

No início de 2021, a artista Giselle Beiguelman ganhou uma planta púrpura de presente. "Como é o nome dela?", perguntou ao amigo que a presenteou. "Judeu-errante", ele respondeu. Foi uma surpresa. O nome é o mesmo de uma lenda antissemita criada há séculos.

Desde então, Giselle encontrou centenas de plantas com nomes racistas, misóginos e antissemitas. A investigação deu origem à mostra "Bottannica Tirannica", em exposição no Museu Judaico, em São Paulo. O público tem acesso a cerca de 70 plantas e a imagens e vídeos com plantas, árvores e frutos com nomes científicos e populares preconceituosos. O objetivo é desconstruir o preconceito e refletir como ele foi repassado ao longo dos séculos, explica a artista. A exposição vai até o dia 18 de setembro e o ingresso custa R$ 20 por pessoa.

O judeu errante é a lenda sobre um viajante condenado a vagar pelo mundo, sem direito à morte ou descanso, por negar ajuda a Jesus Cristo a caminho da crucificação. A história antissemita, difundida pela Igreja Católica medieval contra o judaísmo, foi retratada em peças de teatro e livros com contornos cada vez mais agressivos. Em uma delas, é atribuída ao errante a propagação de doenças que devastaram a Europa. Entre os séculos 19 e 20, a história foi absorvida por nacionalistas antissemitas em textos usados como base do nazismo.

A planta conhecida como "judeu-errante", responsável por desencadear mostra em São Paulo sobre plantas com termos racistas - Reprodução - Reprodução
A planta conhecida como "judeu-errante", responsável por desencadear mostra em São Paulo sobre plantas com termos racistas
Imagem: Reprodução

Em comum, Giselle diz que os nomes pejorativos costumam ser de plantas consideradas "invasoras", "daninhas" ou com formatos incomuns. É o caso da "ciganinha", presente no Cerrado e classificada como invasora no bioma. Há também fungos, como a "orelha de judeu", e plantas com nomes como "bunda-de-mulata", "barba-de-judeu", "catinga-de-mulata" ou "chá-de-bugre". Os termos costumam variar de acordo com a região do país.

O levantamento se estendeu a outros idiomas. Em inglês, por exemplo, as castanhas costumavam ser vendidas como "nigger toe", um termo racista que as comparava com o dedo de uma pessoa preta. O nome caiu em desuso nos Estados Unidos, onde hoje é conhecida como "Brazil nut", ou "noz brasileira".

Há nomes comuns, mas que guardam um histórico problemático. É o caso da "dumb cane", ou "cana burra", conhecida no Brasil como "comigo-ninguém-pode". Segundo um artigo da Universidade de Oxford, o líquido tóxico da planta era usado para dopar ou punir escravizados na América Latina.

A exposição no Museu Judaico questiona nomes racistas, machistas e preconceituosos dado às plantas - Julia Thompson/Divulgação - Julia Thompson/Divulgação
A exposição no Museu Judaico questiona nomes racistas, machistas e preconceituosos dado às plantas
Imagem: Julia Thompson/Divulgação

Consequências históricas

Para Giselle, a botânica liderada por europeus criou nomes pejorativos ou perpetuou os preconceituosos. Segundo ela, as nomenclaturas reforçaram a ideia de seres vivos "menos qualificados" a serem combatidos. Ainda reforçaram as teorias de eugenia dos séculos 19 e 20, cuja consequência foi o racismo científico, o nazismo e a opressão e morte de grupos como ciganos, indígenas e negros.

"A grande metáfora usada pelos eugenistas é que o mundo era um jardim e era preciso se livrar das 'ervas daninhas'", explica a artista para Ecoa. O conceito foi estudado por filósofos como Zygmunt Bauman, que afirma que o estado moderno quis separar o "joio do trigo" e "colher" a raça perfeita "ariana", uma visão determinante do Holocausto.

Segundo o Memorial do Holocausto em São Paulo, seis milhões de judeus foram assassinados entre 1933 e 1945, durante a instauração do regime nazista e na Segunda Guerra Mundial. O Porajmos, ou o Holocausto Cigano, matou cerca de 500 mil ciganos, de acordo com o grupo Embaixada Cigana no Brasil.

Além da botânica, agricultores de agrofloresta também tentam revogar a interpretação negativa dada às interações da natureza, como os termos pejorativos "praga", "plantas invasoras", "parasitária" ou "daninhas". Entre os botânicos, há artigos que desde o início dos anos 90 debatem o uso de termos racistas na taxonomia, ou a descrição e classificação científica dos seres vivos.

Segundo a artista e professora da Faculdade de Arquitetura da USP, os nomes na exposição não serão mudados por uma ordem oficial de governo, mas são estímulo à reflexão sobre uma sociedade mais respeitosa e justa para todos. "Vão dizer que é só uma palavra, mas não é. Por trás das escolhas, havia um imaginário da exclusão naturalizado", conclui.