'Judeu-errante', 'bunda-de-mulata': artista debate nome racista de plantas
No início de 2021, a artista Giselle Beiguelman ganhou uma planta púrpura de presente. "Como é o nome dela?", perguntou ao amigo que a presenteou. "Judeu-errante", ele respondeu. Foi uma surpresa. O nome é o mesmo de uma lenda antissemita criada há séculos.
Desde então, Giselle encontrou centenas de plantas com nomes racistas, misóginos e antissemitas. A investigação deu origem à mostra "Bottannica Tirannica", em exposição no Museu Judaico, em São Paulo. O público tem acesso a cerca de 70 plantas e a imagens e vídeos com plantas, árvores e frutos com nomes científicos e populares preconceituosos. O objetivo é desconstruir o preconceito e refletir como ele foi repassado ao longo dos séculos, explica a artista. A exposição vai até o dia 18 de setembro e o ingresso custa R$ 20 por pessoa.
O judeu errante é a lenda sobre um viajante condenado a vagar pelo mundo, sem direito à morte ou descanso, por negar ajuda a Jesus Cristo a caminho da crucificação. A história antissemita, difundida pela Igreja Católica medieval contra o judaísmo, foi retratada em peças de teatro e livros com contornos cada vez mais agressivos. Em uma delas, é atribuída ao errante a propagação de doenças que devastaram a Europa. Entre os séculos 19 e 20, a história foi absorvida por nacionalistas antissemitas em textos usados como base do nazismo.
Em comum, Giselle diz que os nomes pejorativos costumam ser de plantas consideradas "invasoras", "daninhas" ou com formatos incomuns. É o caso da "ciganinha", presente no Cerrado e classificada como invasora no bioma. Há também fungos, como a "orelha de judeu", e plantas com nomes como "bunda-de-mulata", "barba-de-judeu", "catinga-de-mulata" ou "chá-de-bugre". Os termos costumam variar de acordo com a região do país.
O levantamento se estendeu a outros idiomas. Em inglês, por exemplo, as castanhas costumavam ser vendidas como "nigger toe", um termo racista que as comparava com o dedo de uma pessoa preta. O nome caiu em desuso nos Estados Unidos, onde hoje é conhecida como "Brazil nut", ou "noz brasileira".
Há nomes comuns, mas que guardam um histórico problemático. É o caso da "dumb cane", ou "cana burra", conhecida no Brasil como "comigo-ninguém-pode". Segundo um artigo da Universidade de Oxford, o líquido tóxico da planta era usado para dopar ou punir escravizados na América Latina.
Consequências históricas
Para Giselle, a botânica liderada por europeus criou nomes pejorativos ou perpetuou os preconceituosos. Segundo ela, as nomenclaturas reforçaram a ideia de seres vivos "menos qualificados" a serem combatidos. Ainda reforçaram as teorias de eugenia dos séculos 19 e 20, cuja consequência foi o racismo científico, o nazismo e a opressão e morte de grupos como ciganos, indígenas e negros.
"A grande metáfora usada pelos eugenistas é que o mundo era um jardim e era preciso se livrar das 'ervas daninhas'", explica a artista para Ecoa. O conceito foi estudado por filósofos como Zygmunt Bauman, que afirma que o estado moderno quis separar o "joio do trigo" e "colher" a raça perfeita "ariana", uma visão determinante do Holocausto.
Segundo o Memorial do Holocausto em São Paulo, seis milhões de judeus foram assassinados entre 1933 e 1945, durante a instauração do regime nazista e na Segunda Guerra Mundial. O Porajmos, ou o Holocausto Cigano, matou cerca de 500 mil ciganos, de acordo com o grupo Embaixada Cigana no Brasil.
Além da botânica, agricultores de agrofloresta também tentam revogar a interpretação negativa dada às interações da natureza, como os termos pejorativos "praga", "plantas invasoras", "parasitária" ou "daninhas". Entre os botânicos, há artigos que desde o início dos anos 90 debatem o uso de termos racistas na taxonomia, ou a descrição e classificação científica dos seres vivos.
Segundo a artista e professora da Faculdade de Arquitetura da USP, os nomes na exposição não serão mudados por uma ordem oficial de governo, mas são estímulo à reflexão sobre uma sociedade mais respeitosa e justa para todos. "Vão dizer que é só uma palavra, mas não é. Por trás das escolhas, havia um imaginário da exclusão naturalizado", conclui.
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