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Ex-faxineira, ela criou ONG e impactou 3 mil crianças: 'Abri caminho'

Neuza Nascimento se tornou escritora e fundou a ONG Centro Integrado de Apoio às Crianças e Adolescentes da Comunidade, em Parada de Lucas, no Rio de Janeiro - Divulgação
Neuza Nascimento se tornou escritora e fundou a ONG Centro Integrado de Apoio às Crianças e Adolescentes da Comunidade, em Parada de Lucas, no Rio de Janeiro Imagem: Divulgação

Lígia Nogueira

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

18/07/2022 06h00

Neuza Nascimento tinha 11 anos quando deixou o bairro de João Gomes Velho, na cidade mineira de Santos Dumont, rumo ao Rio de Janeiro com a mãe. A penúltima filha entre 10 irmãos já trabalhava como empregada doméstica desde os oito na época em que chegou a Del Castilho, município na Zona Norte do Rio, e foi levada a uma casa de família pelas irmãs mais velhas para ser ajudante de faxineira. Entre uma tarefa e outra, ia lendo trechos dos gibis que encontrava e pegando gosto pela leitura. "Escondia na calcinha as revistas em quadrinhos e ia para o banheiro ler. Quando batiam na porta me procurando eu dizia que estava com dor de barriga", diz Neuza, entre risadas.

Nas residências em que trabalhava, começou a ler Freud, Marx e Simone de Beauvoir, "mesmo sem entender", e foi construindo repertório para as cartas que escrevia —"verdadeiros romances", diziam os sortudos destinatários. Àquela altura já era moradora de Parada de Lucas. "Meu marido foi embora com outra e me deixou com um filho de 11 anos que um dia cismou de ir ao baile da favela", conta.

"Fui até lá e não gostei do que vi, não era um ambiente para crianças. Ali comecei a entender que eu precisava oferecer a eles uma opção de cultura e lazer", lembra Neuza, sobre a ideia que deu origem ao Centro Integrado de Apoio às Crianças e Adolescentes da Comunidade (CIACAC), ONG que ela dirigiu entre 2000 e 2015 e teve um impacto positivo na vida de 3 mil pessoas.

Assim como a boa literatura, a vida de Neuza foi sendo tecida por tramas paralelas que a levaram pelos caminhos da escrita e da atuação social. Após trabalhar 46 anos como empregada doméstica, hoje, aos 62, ela cursa o 3º período de jornalismo na Estácio e assina reportagens para a Coluna da Neuza no site Lupa do Bem. Seu maior objetivo agora é publicar o livro "De Saracuruna a Copacabana", com 16 contos escritos desde 2003, muitos deles dentro do trem, à noite, enquanto voltava das faxinas cansativas pelos bairros da Zona Sul carioca. Para arrecadar fundos e tornar a obra uma realidade, ela criou um financiamento coletivo com o intuito de pagar os custos com a publicação e o lançamento.

"Saracuruna é um bairro de Duque de Caxias onde há um ramal de trem que vem da central e as histórias acontecem em comunidades e lugares que estão entre esses pontos e Copacabana", diz Neuza, acrescentando que muitos dos locais que servem de cenário para os seus contos deixaram de existir nos últimos 20 anos, como o ponto de ônibus da Praça XV de Novembro, no Centro, ou mesmo os apartamentos de porteiros situados entre a garagem e o primeiro andar em prédios antigos do Rio. "Convivi com muitas mulheres de porteiro, muitas filhas de porteiro, e isso acabou aparecendo nas minhas histórias de alguma maneira", comenta.

Livro - Divulgação - Divulgação
No livro 'De Saracuruna a Copacabana' Neuza Nascimento reúne 16 contos escritos entre uma faxina a partir de 2003
Imagem: Divulgação

A maior parte dos textos começou a tomar forma quando Neuza ganhou uma bolsa de estudos para escritores, em 2004, e escolheu renunciar a algumas faxinas para poder participar das aulas em uma escola no Flamengo. "Uma das tarefas era levar os contos dos outros participantes para casa para criticar. Um dia eu tomei coragem e critiquei um texto que não tinha verossimilhança —essa palavra eu aprendi nas oficinas e nunca vou esquecer. Ali eu comecei a entender o que era uma crítica e fui melhorando minha escrita, porque a gente passa a prestar atenção. Ao final do curso eu já tinha produzido oito contos e recebi do professor o comentário: 'Imprima-se com louvor'."

Quando cheguei pela primeira vez no curso eu me senti intimidada. Os alunos eram todos brancos, ricos, publicados e premiados. Eu não pensava em conquistar o meu lugar porque não tinha essa autoestima.

Neuza Nascimento, escritora

"Meu sonho era ser secretária porque eu tinha paixão pela máquina de datilografar. Mas eu não tinha noção do que eu podia ser, por conta de um sentimento de não merecimento que é resultado de toda uma criação. Minha mãe nos criou de uma forma que nós não sofrêssemos aqui fora, então ela batia. Era só dizer 'sim, senhor; sim, senhora'. Eu sequer sabia que eu podia me demitir de um emprego."

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Neuza Nascimento na ONG em Parada de Lucas
Imagem: Divulgação

Destaque na comunidade

Convidada a participar de um projeto social chamado "Mulheres em Ação", que premia e conta a história de mulheres de destaque na comunidade, Neuza e outras companheiras trouxeram luz sobre o que mais as emocionou ao longo dos anos realizando trabalho social. Estes contos viraram uma peça de teatro. Durante a exibição estava presente outro grupo de mulheres também voltado a projeto sociais, que convidou as envolvidas a participarem de uma ação para crianças e adolescentes. O intuito de Neuza era contar histórias para crianças, mas o projeto acabou se tornando uma oficina de contos escritos.

Alef - Divulgação - Divulgação
Alef Souza encena peça no Centro Cultural Laurinda Lobo
Imagem: Divulgação

Mais tarde, já como diretora da ONG em Parada de Lucas —o único projeto social nascido dentro da comunidade, para as pessoas de lá—, Neuza teve a oportunidade de realizar mais de 300 passeios para conhecer lugares como o Centro Cultural Banco do Brasil e o Piscinão de Ramos com crianças como Alef Souza, hoje com 28 anos. "Conhecia Neuza de vista, eu era muito novo, devia ter mais ou menos uns 10 anos. Via as pessoas arrumadas para os passeios e fui me aproximando aos poucos. Por causa do projeto dela conheci lugares que eu nunca tinha imaginado, como Santa Tereza, e até montei peças de teatro. Descobri esse talento ali."

Por volta de 2008 ela criou uma oficina de cidadania para os jovens atendidos pela ONG e começou a receber voluntários estrangeiros. "Eles ficavam em Copacabana e iam trabalhar uma vez por semana", conta. "Depois fechei uma parceria com uma instituição espanhola e passei a receber voluntários sempre, que davam aulas de capoeira, informática, espanhol, basquete. Com o tempo montei um esquema de manual para os voluntários, mas a favela era perigosa e eu mesma acabei me mudando de lá."

Diante da história escrita à base de tanta luta, Neuza diz se identificar mais como liderança do que como articuladora. "Aprendi que liderança não é quem comanda, e sim quem está à frente abrindo o caminho para os outros virem."