Mecânico pedala 24 horas contra a fome entre Pernambuco e Bahia
O dia tinha acabado de amanhecer quando Miro Souza se levantou da cama naquela sexta-feira, 15 de julho. Ele tomou um café reforçado para encarar o desafio de pedalar 24 horas pelas cidades de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA). A meta, estabelecida por ele mesmo, foi a forma encontrada para chamar atenção das pessoas para a fome que assola as comunidades periféricas da região.
"A ideia veio no início da pandemia. Muita gente perdeu emprego, muitos pedindo nos sinais de trânsito, batendo nas casas... Aí tive essa ideia, porque já vi amigos meus ciclistas de outras cidades com ações semelhantes", conta o mecânico de bikes, que adaptou a proposta que lhe serviu de inspiração e, diferente dos que fazem desafios de ciclismo indoor — parado em um único lugar —, resolveu percorrer as ruas.
Às 7h, ele já estava montado na sua bicicleta, vestindo uma roupa térmica e usando capacete e óculos de proteção. Miro carrega consigo duas garrafinhas de água e alguns itens em pequenos compartimentos na própria roupa e em uma mochila, como sanduíche, barras de doce e protetor solar. São os suprimentos para a jornada que começou no bairro Vila Eulália, onde reside em Petrolina (PE), a 712km da capital Recife.
Essa é a segunda vez que o mecânico de 35 anos se propõe a tal feito, dentro de seu projeto "Provisão de amor - Saciando fomes". Na primeira, no auge da pandemia, foram arrecadadas 145 cestas básicas até o final do percurso, que alimentaram as famílias que passavam pela crise gerada pelo isolamento. Dessa vez, antes mesmo de sair pedalando, já se somavam 50 cestas garantidas.
Percurso exaustivo por dois estados
Quando o sol fica a pino e o sertão, região de calor intenso, registra suas maiores temperaturas do dia, é nas sombras das árvores do Parque Municipal Josepha Coelho que Miro encontra abrigo para continuar sua pedalada. O espaço é ideal para a segurança do ciclista, contornando os horários de pico no trânsito da cidade.
Enquanto ele segue com o desafio, a amiga Josilene Conceição, 42, fica em um ponto estratégico, recebendo as doações que chegam presencialmente e reabastecendo o ciclista com mais água, comida e até arrisca pedalar um pouco como incentivo.
"A gente já trabalha há bastante tempo fazendo essas ações voluntárias e, a cada vez, o sentimento é maior. A gente fica com o coração partido de ver a situação em que nossos semelhantes se encontram, que é bastante precária, e nós temos o desejo de ajudar mais e mais", explica a funcionária pública que acompanha todas as etapas do projeto.
Seja no asfalto ou nas pistas de terra, Miro não para. Bebe água, responde as mensagens do celular, almoça... Tudo em cima de sua bike, companheira nessa jornada solidária. Para encarar tantas horas de atividade física, ele explica que a preparação já é cotidiana, não muda muito sua rotina por já ter os esportes de ciclismo e natação no seu dia a dia.
"No meu caso, já tem muitos anos que eu influencio as pessoas a pedalarem, mais por conta do meio ambiente mesmo, porque a bicicleta ajuda e muito a conservar a biodiversidade do planeta, já que o aquecimento global não tá de brincadeira", conta.
Ao cair da noite, Miro segue viagem, fazendo as rodas da bicicleta girarem novamente pelas ruas da cidade. Ele passa pelas principais avenidas de Petrolina, pega a BR-428 (estrada para Recife) e visita a mística Serra da Santa, na entrada do município. Ao retornar para área urbana, roda pela orla beirando o Rio São Francisco e, por volta de 22h30, atravessa a ponte pela BR-407, rumo à Juazeiro (BA).
No território baiano, o desafio segue madrugada adentro. Algumas poucas paradas são necessárias, utilizando postos de gasolina como pontos para abastecer a água e usar o banheiro, o que faz duas ou três vezes, no máximo, durante toda a maratona. Além de passar pelas ruas centrais, ele também vai pelos caminhos que levam às comunidades rurais, mudando de paisagem, do caos da cidade para a calmaria do campo.
Na manhã do sábado (16), a chegada na casa da amiga onde estão guardadas as doações é o ponto final do trajeto. Ainda na garagem, ele deitou no chão e "apagou", era o merecido descanso depois de tantas horas se exercitando.
Ainda com batimentos acelerados pela adrenalina do desafio, ele diz estar "acabado". "Foi muito complicado, mas terminamos, graças a Deus", comemora os mais de 475 km percorridos.
Pedalada que engaja solidariedade
Não há cansaço que separe Miro da bicicleta. Já pela tarde do mesmo dia, ele estava pedalando novamente, desta vez para ir ao local organizar as doações e dividi-las em cestas básicas. "Pense num negócinho que não abusa. Pedalar é coisa boa demais", afirma.
As compras dos itens para as cestas foram realizadas em um supermercado que vende em atacado, na cidade baiana. Local escolhido após muita pesquisa, já que o intuito era que o recurso arrecadado rendesse para saciar a fome do maior número possível de famílias. Foi possível montar 175 cestas, superando a primeira edição.
Todas as 24 horas pedalando pelas ruas e avenidas, só fizeram real sentido na manhã do dia seguinte. No domingo (17), Miro se reencontrou com os amigos e levou os alimentos para entregar aos moradores de comunidades periféricas das duas cidades.
Em um assentamento de Petrolina, ao lado de uma lagoa de estabilização de esgoto que jorra água suja ao redor, cerca de 50 famílias moram em barracos construídos de madeira e pouca alvenaria. Essa é a Vila Santa Helena, que não tem um sistema de saneamento e iluminação pública, e foi a primeira comunidade visitada no dia.
"Essas doações são muito importantes, porque têm muitas famílias hoje aqui que não tinham nem um arroz para colocar no fogo. São pessoas que necessitam não só da cesta básica, mas de um pouco de atenção das pessoas lá fora", explica a líder comunitária Elis Regina Monteiro dos Santos, 46, que mora no local há cinco anos com o marido.
A ajuda que chega alivia um pouco a situação de quem estava com a dispensa vazia e sem saber o que comer durante a semana. Com uma criança no colo e duas correndo ao seu redor, Ana Paulo Souza Oliveira, 23, recebe duas cestas que servirão para alimentar os três filhos por alguns dias.
"Aqui estava sem nada. Não tinha mais feijão e o leite do mais novo acabou. Isso vai ajudar. Hoje em dia, nem toda pessoa tem condições de comprar um feijão porque está de R$ 10 e pouco, o leite já tá R$ 8,70. Eu mesma não tenho condições de estar comprando direto e o meu caçula toma leite ainda. A situação vai ficar aliviada esses dias, depois vamos ver o que a gente pode fazer no mês seguinte", conta a jovem dona de casa que foi mãe aos 15 anos.
Quem recebe as doações, agradece pela ajuda que chega em boa hora. E, quem é voluntário sai com a certeza de que fazer o bem ao próximo é também gratificante para si. A dona de casa Maria Ozenir Araújo, 57, foi uma das que reservou um pouco de tempo para apoiar a ação. Ela é mãe de Miro e ficou encarregada de distribuir doces para alegrar as crianças das comunidades.
"Foi um orgulho para mim, porque eu adoro crianças e fico feliz por elas. Olhando elas abrirem a mãozinha e ver tanta gratidão. É bom cada pessoa olhar uma comunidade dessa para poder ajudar o próximo. É a missão de cada um, né? Ajudar as pessoas que precisam", convoca.
Após uma pausa de almoço, o grupo seguiu com as atividades à tarde, no bairro Malhada da Areia, periferia de Juazeiro. Essa é a última parada de Miro e sua turma. Depois de tantas horas, a exaustão da pedalada deu lugar a alegria de quem luta para, aos poucos, construir um mundo com menos desigualdade. "O sentimento é de gratidão. Isso vai ficar pro resto da minha vida, esse sentimento de dever cumprido perante aos meus semelhantes", relata o mecânico.
A experiência foi muito além de um desafio físico e tocou o humano, que promete seguir planejando novas ações sociais na região.
"É um contraste muito grande, muito grande mesmo. A gente fica lá na nossa comunidade, nas nossas casas, tudo bonitinho... E depois a gente chega aqui e vê a coisa assim, completamente diferente. Tem muita gente que está precisando de uma ajuda do poder público. Nós, como cidadãos, temos esse dever de ativar o nosso lado humano e ajudar nossos irmãos"
Miro Souza
Para colaborar com o projeto "Provisão de amor - Saciando fomes", é possível entrar em contato pelos telefones (74) 9.8852-7555 ou (87) 9.8873-0552. No Instagram, ele compartilha detalhes de suas campanhas. Mais informações estão no site.
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