Minicidade de estrangeiros no interior causou revolução, mas jamais existiu
Um grupo de estrangeiros usou a pequena cidade de Caçapava, no interior de São Paulo, para um projeto que inspira professores, arquitetos, urbanistas e estudiosos até hoje. Nos anos 80, um irlandês, uma alemã e um australiano desenharam uma vila operária à beira da rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. A ideia era ousada, mas pesquisadores defendem que o modelo criado há 40 anos ainda pode gerar cidades mais sustentáveis.
Na época, o trio de amigos projetou uma "microcidade" onde operários iriam produzir a própria comida, criar animais e ter um reservatório com água para consumo e irrigação. O projeto já previa o uso de aquecimento solar, coleta seletiva, compostagem e produção de biocombustível. Até a direção do vento foi considerada para arejar as casas sob o sol forte característico do Vale do Paraíba.
Caçapava Projects
O projeto foi chamado de "The Caçapava Projects". Hoje, mais de 40 anos depois, o documento ainda circula em fóruns, artigos e na rede. Não à toa, os desenhos são do australiano Bill Mollison, um dos maiores pensadores sobre sustentabilidade das últimas décadas. Os livros e os cursos do botânico da Tasmânia continuam estudados em todo o planeta. Nos anos 70, Mollison criou a permacultura, uma prática que une agricultura e a conservação da natureza. A viagem até Caçapava permitiria Mollison praticar aquilo que ensinava há mais de uma década.
Tudo começou em 1981. Mollison foi convidado pelos amigos, alunos e arquitetos Declan Kennedy, da Irlanda, e a esposa alemã Margrit Kennedy para conhecer o Brasil. O casal estudava ecologia e planejamento urbano, na época ainda temas distantes entre si. O irmão de Margrit era sócio de uma fábrica de sanfonas industriais alemã chamada Hübner, com sede na Alemanha e em São José dos Campos, cidade industrial paulista. Na década de 1980, a Hubner ampliou as operações para Caçapava e encomendou aos Kennedy uma vila operária no novo município. (Sanfonas industriais são usadas em ônibus biarticulados, por exemplo).
Declan, 88, se entusiasmou com o clima agradável, chuvas, solo fértil e biodiversidade do Brasil. Em Caçapava, a empresa financiou um piloto: uma única casa rodeada por um jardim, árvores e calculada para receber a ventilação. Ali viveria o zelador. Mollison projetou os jardins e hortas e os Kennedy desenvolveram as casas - Margrit instruiu as famílias a como cultivar a terra, cuidar dos jardins e se eles gostariam de participar.
"Minha esposa entendeu que era preciso trabalhar com a natureza, não contra a natureza", explica Declan para Ecoa, o único vivo dos três. Segundo ele, 25 funcionários foram beneficiados por uma só casa com jardim. "Eles voltavam para casa com quilos de frutas. Era como um segundo salário", diz.
O "Caçapava Projects" foi dividido em duas etapas. Na primeira, seriam construídas seis casas sustentáveis. Depois, salas para reuniões, uma biblioteca, uma enfermaria, acomodações, um banco de sementes e um restaurante self-service aberto para as indústrias próximas. No total, seriam cerca de 1100 metros quadrados da vila. O investimento na segunda etapa se pagaria em dois anos, calculavam.
À época, Caçapava tinha 30 mil habitantes. Hoje são 90 mil, segundo o IBGE. Os candidatos às casas viviam em residências com no máximo 60 m² divididos com cerca de 4 pessoas. O mais pobre, um vigia noturno, morava na favela em um barraco com 25 m².
O projeto apresentou três formas de custeio para ajudá-los: por meio de aluguel pago para a empresa, pela venda do imóvel financiado e, por último, um modelo misto onde o funcionário pagaria um aluguel e, após o terceiro ano, pagaria uma mensalidade à empresa para tornar-se proprietário em 14 anos. As casas poderiam acomodar 4 pessoas da mesma família.
Os arquitetos calcularam que a produção de alimento ajudaria nas contas domésticas e melhoraria a qualidade de vida dos funcionários. "A autossuficiência alimentar irá praticamente pagar o valor investido na casa em 4 ou 5 anos", previa o projeto. Um agricultor seria contratado para ensiná-los a manejar a terra e cuidar dos jardins.
Mollison listou os alimentos que poderiam ser produzidos em cada jardim: mamão, abacate, batata, batata-doce, milho, inhame, arroz, centeio, feijão etc., além de uvas e kiwi em uma área suspensa por bambus. Nas áreas áridas, o plantio de cactos comestíveis, como a pitaya, e bambus para virarem cercas para galinhas, galinhas-d'angola e gansos criados para consumo e alimentados com a produção. "Era um sistema de policultura", explica Declan, que também listou as árvores.
O esterco - até mesmo o produzido por humanos - seria adubo e geração de biogás; a água do banho e da lavanderia abasteceria tanques para ser reutilizada. A temperatura da água seria controlada por meio de canos, em um processo similar à geotermia superficial.
"Mais pobres podem ter moradia digna"
"Existia um aspecto social muito forte no projeto", avalia Paulo Campos, geógrafo e historiador da permacultura. O pesquisador diz que o projeto em Caçapava não influenciou apenas ecologistas locais, mas causou uma quebra de paradigma mundial em prol de cidades mais sustentáveis, na qual o Brasil foi líder na América Latina e à frente de países europeus e dos Estados Unidos. "Era uma das primeiras ideias de que os mais pobres poderiam ter moradia digna", diz.
O trio apresentou o "Caçapava Projects" em palestras no Rio de Janeiro, Curitiba e São José dos Campos e viajou para Minas Gerais e para estados da Amazônia. O então engenheiro civil e agrônomo Miguel Aloysio Sattler estava em uma dessas apresentações, em São Paulo. À época, ele se preparava para um doutorado na Inglaterra. Hoje, é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e um dos grandes nomes na América Latina sobre construções sustentáveis. "Foi uma inspiração fundamental para direcionar todos os meus trabalhos dali em diante", diz.
Segundo o professor, o "Caçapava Projects" uniu desenvolvimento sustentável à solução para um problema crônico brasileiro: a falta de moradia. "Os conjuntos habitacionais deveriam atender desta maneira [sustentável] ", diz. No início dos anos 2000, Sattler se inspirou na ideia de Caçapava para criar um projeto sustentável para a prefeitura de Nova Hartz, no Rio Grande do Sul. A construção era uma espécie de laboratório para testar, em grande escala, vários preceitos de Caçapava, como conforto térmico, produção de alimentos e conforto térmico.
Sattler também direcionou pesquisas sobre a cidade gaúcha Feliz, onde a produção de alimentos de pequenas comunidades elevou o índice de desenvolvimento humano do município. Nos anos 1990, o professor disse que a influência do "Caçapava Projects" fez Mollison voltar no Brasil para a Rio-92, conferência da ONU considerada como um marco histórico da ecologia mundial. Naquele mesmo ano, os livros de Mollison foram traduzidos e o primeiro centro de estudo de permacultura foi criado no Brasil.
A cidade sustentável que nunca saiu do papel
Declan diz que a casa protótipo do "Caçapava Projects" funcionou durante um ano. A direção, porém, decidiu transformá-la em um refeitório. Após uma troca de diretores, a inspiradora vila para os operários foi descontinuada, na surdina. Ecoa entrou em contato com as sedes alemãs e brasileiras da empresa, mas os funcionários e sócios afirmaram desconhecer mais informações.
Bill Mollison, conhecido pelo temperamento difícil e cultuado pela genialidade, morreu em 2016 aos 88 anos. Margrit morreu em 2013 na casa onde vivia, na cidade alemã de Steyerberg, reconhecida como um dos maiores nomes da ecologia na Europa.
Declan veio para o Brasil mais três vezes, fundou uma vila ecológica na Alemanha e orienta alunos no mundo todo sobre desenvolvimento sustentável. "Há tantas pessoas atualmente interessadas em permacultura e repensando hábitos contra a mudança climática que eu me sinto empolgado. Sou realmente grato", conclui o arquiteto.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.