Chile: Natureza ganhar 'status humano' em Constituição ajuda preservação?
Não que a ideia seja novidade para muitos povos da Amazônia, mas a natureza tem ganhado cada vez mais "status humano" em países da América Latina. No Equador, no Chile e na Bolívia houve uma incorporação dos direitos da natureza em suas constituições, que de forma geral pregam a vida humana em harmonia com o meio ambiente.
Como exemplo, após longos debates e disputas, o Chile aprovou em seu 9º artigo da constituição que 'a natureza tem direitos e que o Estado e a sociedade têm o dever de protegê-los e respeitá-los', além de afirmar que indivíduos e povos são interdependentes com a natureza e formam um 'todo inseparável'.
No entanto, antes da aprovação na Convenção Constitucional chilena, os debates receberam críticas que relacionavam os direitos a um atraso no desenvolvimento e que os direitos humanos estariam subordinados ao direito da natureza, como apontado na coluna Latinoamérica21 da Folha.
Mas será que o avanço dos Direitos da Natureza realmente altera as coisas na prática? Para entender mais sobre o tema e suas nuances, Ecoa conversou com uma advogada, que pesquisa questões relacionadas ao antropoceno e sobre a revolução ecojurídica. Veja a seguir:
Sim
Reconhecer natureza como sujeito de direitos é preocupação legítima
A preocupação é legítima e deriva dos fenômenos ocasionado pelas mudanças climáticas nas últimas décadas, que inclusive, levou a criação do documento que propõe Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra (levado em 2020 no evento Rio +20), disseminando de forma internacional a ideia do reconhecimento da Natureza como sujeito de direitos para que haja a preservação dos ecossistemas na Terra.
O reconhecimento da natureza como um ser vivo também é comum nas culturas de povos indígenas no Brasil e por outros povos indígenas latino-americanos, que fazem referência à Terra enquanto um organismo vivo.
Se humanos agridem a natureza, nosso sistema judicial deve protegê-la
Os humanos vêm alterando o planeta em um ritmo imparável e irreparável. Não à toa vivemos na era conhecida por alguns ambientalistas como antropoceno, que marca os impactos do homem nas alterações e regulações do planeta - pela emissão de gases do efeito estufa, produção de plástico e outros impactos advindos da atividade humana que perduraram por séculos no planeta.
Sílvia Piva, doutora em direito, inspirada na obra do jornalista estadunidense Thomas Friedman "Quente, Plano e Lotado", diz que a natureza é uma sinfonia harmoniosa, mas nós humanos estamos a alterando com uma guitarra elétrica estridente. Portanto, nada mais justo que as regras do direito sejam aplicadas para controlar nossa própria destruição do meio ambiente.
Caminho para romper com sistema jurídico que não reconhece a natureza
De acordo com Piva, o nosso atual sistema jurídico é antropocêntrico, sobretudo no ocidente - focando na construção da sociedade humana e por consequência nas regras que formam o direito em uma visão que tem apenas os humanos como o centro.
Dessa forma, incluir leis que reconhecem a natureza como 'sujeito de direitos' uniu novamente os humanos à natureza e é um caminho para uma chamada transição 'ecojurídica', que privilegia um modo de vida mais sustentável e leva em conta ciclos sustentáveis para que a humanidade usufrua dos bens da natureza tendo consciência de que estes podem ser finitos.
Um exemplo prático que corrobora com esse caminho de consciência ecojurídica ao redor do mundo aconteceu na Nova Zelândia em 2017, quando o país concedeu personalidade jurídica ao rio Whanganui, que foi defendido em tribunal por um advogado do povo maori e um [advogado] do governo. Depois, o Monte Taranaki e um parque nacional também ganharam 'status legal de seres humanos' no país.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 traz uma referência sobre consciência ecojurídica, na medida em que coloca no artigo 225 os termos: 'sadia qualidade de vida, bem comum do povo, futuras gerações, entre outros aspectos que se relacionam ao meio ambiente/natureza.
Não
Interpretação do direito pode ter más intenções 'em nome da natureza'
A natureza não tem voz [em sentido estrito] e quem irá dizer qual é ou não é o direito dela é o próprio ser humano. Neste caso, más intenções poderão ser utilizadas para se fazer algo 'em nome da natureza'.
Contradição: leis beneficiam os seres humanos e não a natureza na prática
A proteção da natureza, de acordo com esta visão, deve estar centrada na preservação da humanidade, essa é uma visão antropocentrista, na medida em que a natureza deve ser preservada para garantir a existência do homem.
Neste entendimento, não faria sentido a natureza ser sujeito de direitos uma vez que ela não precisa ser defendida pois quem possui o risco de extinção é a humanidade com a sua devastação - e quem a devasta é próprio homem.
Apenas leis não são capazes de proteger a natureza
Apenas leis, sejam elas quais forem, não são capazes de proteger a natureza por si só. É preciso investir em educação e uma formação de cidadania que forme consciência desde cedo que não há separação entre humanos e natureza, e eliminar o chamado 'mito do progresso' - fazendo cada indivíduo, sociedade e país compreender os processos e princípios ecológicos.
Além disso, é preciso criar produtos e hábitos de consumo que sejam realmente conscientes e que não cheguem em ciclos que podem exaurir a natureza. Dentro desse contexto, mesmo as leis mais rígidas e que garantem autonomia à natureza não serão capazes de preservar o meio ambiente.
Fontes: Sílvia Piva, doutora em direito, Fundadora da Nau d'Dês, hub de conhecimento transdisciplinar sobre temas relacionados ao Futuro do Direito, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Transobjeto: Epistemologia, Ética e Tecnologias Emergentes da PUC-SP. Foi pesquisadora do IEA-USP sobre simbiose humano-tecnologias, antropoceno e cidadania digital.
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