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O que acontece quando crianças cegas brincam com as que enxergam no mato

Ana Ferriani/Divulgação
Imagem: Ana Ferriani/Divulgação

Mayara Penina

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

26/08/2022 05h00

Levar crianças cegas e que enxergam para brincar juntas na natureza, esta é a proposta do projeto Natureza de Criança, que fez isso acontecer recentemente no Legado das Águas, maior reserva privada de Mata Atlântica no Brasil, situada em Miracatu (SP). Onze crianças com deficiência visual e onze crianças sem deficiência foram brincar juntas num lugar de natureza exuberante com mata densa e primária.

Partindo do princípio de que todo ser humano merece a oportunidade de experimentar novas sensações e movimentos em ambientes naturais, a criadora do projeto, Isabela Abreu, traz à tona o tema da inclusão e propõe a desmistificação de ideias preconcebidas sobre a deficiência visual na prática.

No Legado das Águas, há cachoeiras, trilhas, caiaque acessível, jardim sensorial e uma ótima estrutura para receber os visitantes, o que o torna um lugar ideal para realização de programas inclusivos.

"A natureza é palco tanto de repertório de atividades e possibilidades, quanto um palco energético, fazendo com que a troca seja muito fluida", diz Isabela.

Eu estava lá com meu filho, Joaquim Batista, de 9 anos. Joaquim não tem deficiência, tem pouco contato com crianças com deficiência e nenhum contato com crianças com deficiência visual.

Para fazer as atividades propostas, as crianças formaram duplas e Joaquim fez dupla com a Jullia Eduarda, de 11 anos.

O projeto Natureza de Criança levou crianças ao Legado das Águas, maior reserva privada de Mata Atlântica no Brasil, em SP - Ana Ferriani/Divulgação - Ana Ferriani/Divulgação
O projeto Natureza de Criança levou crianças ao Legado das Águas, maior reserva privada de Mata Atlântica no Brasil, em SP
Imagem: Ana Ferriani/Divulgação

Como é comum as crianças, abertas à experimentação, logo se entrosaram, ficaram amigos e foram explorar a natureza juntos.

Jullia confiou em Joaquim para guiá-la e foi muito generosa em compartilhar suas vivências como uma menina com deficiência visual. A princípio existia um certo receio e medo de errar. Como segurar a mão, o braço, como descrever as coisas, como ser auxílio ao caminhar?

Mas com conversa tudo logo se resolveu. Num dia frio, chuvoso e nublado, de mãos dadas mata à dentro, curtiram as trilhas, a represa, o riacho, as quedas d'água, a canoagem, o banho de rio, o som da floresta, cada um a seu modo.

Joaquim foi compartilhando com Jullia cada coisa interessante que via no caminho e também guiando seus passos no chão irregular da floresta: "tem um raiz no chão, olha o galho, aqui está escorregadio, uma árvore tão grande que nem sei dizer o tamanho".

Esteve empenhado em descrever cada tom de verde e diversidade de galhos e folhas, convidando-a para tocar e sentir juntos.

Onze crianças com deficiência visual e onze crianças sem deficiência foram brincar juntas na natureza  - Ana Ferriani/Divulgação - Ana Ferriani/Divulgação
Onze crianças com deficiência visual e onze crianças sem deficiência foram brincar juntas na natureza
Imagem: Ana Ferriani/Divulgação

Ao fim do dia, acredito que Joaquim e Jullia tenham saído afetados um pelo outro, com maior repertório de comunicação e mais conforto ao lidar com o que é diferente vivendo uma experiência em comum.

Jullia acha que toda criança com deficiência devia ter mais contato com a natureza. "Foi a primeira vez que fiz trilha, gostei muito, muito mesmo. Eu me senti segura com Joaquim e também me diverti muito", contou.

Já para Joaquim, como foi sua primeira vez guiando alguém, ele disse que foi um pouco difícil e desafiador porque a trilha era bem escorregadia e com muitos obstáculos, tipo raízes de árvores.

"Mas eu me diverti muito. Foi uma aventura, com certeza. Eu aprendi que os cegos também têm direito de se aventurarem. Tem gente que acha que os cegos não conseguem, mas a maioria das coisas eles conseguem fazer igual quem enxerga. Também foi importante para se desligar da internet, e ficar na natureza", disse.

'A natureza é palco tanto de repertório de atividades e possibilidades', diz Isabela Abreu, idealizadora do projeto - Ana Ferriani/Divulgação - Ana Ferriani/Divulgação
'A natureza é palco tanto de repertório de atividades e possibilidades', diz Isabela Abreu, idealizadora do projeto
Imagem: Ana Ferriani/Divulgação

A pesquisa "Os benefícios da educação inclusiva para crianças com e sem deficiência", feita em 2016 pela ABT Associates e pelo Instituto Alana, comprova as falas de Joaquim e Jullia e detalha os benefícios da educação inclusiva para todas as crianças, como, por exemplo, a diminuição do medo das diferenças, aumento da autoestima, menos preconceito e maior capacidade de responder às necessidades dos outros.

Para Eduardo Soares, educador físico e atleta com deficiência visual, experiências como essa "mostram às crianças com e sem deficiência que o mundo em que estão chegando agora pode ser um mundo inclusivo".

Ele é consultor de esportes radicais para pessoas com deficiência visual e foi um dos profissionais que fez o programa acontecer. "O Natureza de Criança mostra na prática para crianças com deficiência que se elas quiserem escalar, correr, remar, jogar bola, elas podem, é possível. Para as crianças sem deficiência mostra que todas as crianças podem brincar juntas com adaptações. Todo mundo ganha", diz.

Além de todos estes motivos, estar na natureza é uma oportunidade de desenvolver autonomia de escolher os riscos que quer correr, gerenciá-los e aprender sobre eles."Esse é um benefício gigante para o desenvolvimento da criança com deficiência visual. Uma criança que já foi pra natureza, já fez uma trilha, fez uma canoagem, tem seu reportório de mundo ampliado, amplia o seu conhecimento e suas experiências", completa Isabela.

A inclusão no Brasil: como estamos?

Eduardo relembra as dificuldades que enfrenta no dia a dia sendo um homem cego e afirma que a convivência cotidiana com crianças com deficiência, faz com que não vejam condições diferentes como algo inferior.

"Agora elas sabem que podem levar o amigo cego para acampar, escalar, ir pra uma balada. A gente luta para que ninguém seja diferente, somos pessoas como qualquer outra, temos apenas especificidades".

'"O Natureza de Criança mostra para crianças com deficiência que se elas quiserem escalar, correr, remar, jogar bola, elas podem', diz Eduardo Soares - Ana Ferriani/Divulgação - Ana Ferriani/Divulgação
'"O Natureza de Criança mostra para crianças com deficiência que se elas quiserem escalar, correr, remar, jogar bola, elas podem', diz Eduardo Soares
Imagem: Ana Ferriani/Divulgação

A fala de Eduardo, que tem 41 anos e nasceu com baixa visão, expõe que a inclusão no Brasil é um debate recente, considerando que a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - L13.146 é de 2015.

Porém, trata-se de uma legislação completa, que contempla os direitos de pessoas com deficiência nos mais diversos espectros, como condições físicas, mentais, intelectuais e sensoriais.

"Eu tenho relatos concretos que todas as pessoas que participaram do passeio entenderam que houve uma mudança de olhar em relação a deficiência visual a partir do programa. É pela falta de conhecimento, pela falta de experiência, pela falta de vivência e contato com a deficiência visual que as pessoas acabam tendo ideias equivocadas", diz Isabela.

"A gente pressupõe que o mundo dos cegos é triste, escuro e sem possibilidade, que são pessoas que não brincam, não tem desejo, não dão risadas, não falam gírias, não tem uma vida comum. Ao romper estas ideias, isso faz com que nós sejamos adultos mais tolerantes, mais inclusivos, e crianças que saibam lidar com as diferenças, que saibam e entendam que o mundo é diverso e que na sua diversidade há beleza do convívio", finaliza Isabela.

O Natureza de Criança tem a proposta de levar crianças e suas famílias para espaços de natureza exuberante Brasil afora. Esta edição inclusiva é gratuita e conta com a parceria do Instituto Votorantim e do Legado das Águas por meio da Lei de Incentivo ao Esporte.