Não é mato, é PANC: Elas te fazem viver mais e ajudam a salvar o planeta
Ora-pro-nóbis, araruta, bertalha e taioba. Para muitas pessoas, essas palavras não se traduzem visualmente na imaginação da mesma forma como acontece quando se pensa em brócolis, alface, rúcula e agrião. As primeiras fazem parte do grupo conhecido como Plantas Alimentícias Não Convencionais, as PANCs, que, como o acrônimo sugere, são hortaliças, frutas, flores ou ervas comestíveis, mas pouco conhecidas.
Pela falta de informação, elas são confundidas com ervas daninhas ou com "mato". Apesar de não serem tão populares na dieta do dia a dia, as PANCs são grandes aliadas para a conservação do meio ambiente e para promover uma alimentação mais saudável.
De acordo com projeções da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), até 2050 serão dez bilhões de pessoas no mundo, e os sistemas alimentares precisarão se adaptar para atender essa demanda.
A preocupação vai além da simples oferta de alimentos em volume. Com as mudanças climáticas, regiões que hoje são produtivas, como o Centro-Oeste brasileiro, podem sofrer com variações no padrão de chuva. Além disso, é preciso pensar nos efeitos dos alimentos na saúde: a ideia é que as pessoas tenham mais acesso a produtos frescos, produzidos localmente e optem cada vez menos por itens industrializados.
A estratégia de usar a imagem mental para entender se uma planta é convencional ou não é uma prática do biólogo Valdely Kinupp, que cunhou o termo PANC em 2007 e é autor do livro "Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil", de 2014.
"Por mais que as pessoas não conheçam botânica, quando se fala em espécies comuns, a maioria da população consegue formar uma imagem no cérebro. Com as PANCs isso não ocorre. É um trabalho que levará muito tempo", disse Kinupp.
Depois de mais de uma década, período marcado por crises econômicas, greve de caminhoneiros, pandemia, secas prolongadas, mudança do clima e guerra na Ucrânia - situações que colocaram em xeque a segurança alimentar -, Kinupp acredita que as PANCs estão longe da evidência que deveriam ter.
"Há uma monotonia alimentar e uma monocultura no campo. É uma ditadura dos impérios agroalimentares. Com exceção de um mercado étnico ou feirinha com produtos regionais, todos os lugares têm os mesmos alimentos", disse.
Estimular o aumento da biodiversidade no prato é uma ação que pode ter efeitos positivos no meio ambiente, pois promove a variedade produtiva no campo, e na saúde das pessoas, que vão consumir nutrientes diferentes e reduzir a ingestão de alimentos cultivados com o uso de agrotóxicos. Estima-se que o Brasil tenha cerca de 10 mil espécies de PANCs, dado que é difícil de ser comprovado pela baixa produção de pesquisas sobre o tema.
De acordo com o estudo "Plantas alimentícias não convencionais no Brasil: o que a Nutrição sabe sobre este tema?", realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e publicado em 2020, um dos desafios no campo da alimentação é a ideia de "manter o alto nível de produtividade indefinidamente, utilizando os atuais sistemas de produção e promovendo um meio ambiente sustentável mesmo com contínuas mudanças climáticas, aumento da concorrência por recursos hídricos e perda de terras produtivas".
Para a nutricionista e professora de gestão cultural no Instituto Itaú Cultural, Neide Rigo, os debates frequentes sobre o meio ambiente deveriam considerar também o universo dos alimentos.
"De repente, as pessoas se dão conta de que podem ter a biodiversidade no prato. É muito encorajador para ter mais saúde. Os nutrientes não são encontrados em um produto só. Quanto maior a variedade, maior será a segurança de atender às necessidades nutricionais", diz.
Em São Paulo, Rigo criou o roteiro PANC Na City, um passeio pelas ruas do bairro City Lapa, durante o qual ela identifica espécies de PANC no meio urbano.
"As pessoas têm medo das ruas, dos bairros e dos vizinhos. Nesse passeio, eu mostro que é possível ter uma relação mais amigável com o entorno e prestar atenção nas árvores. Parece que tem uma distância, como se as pessoas vivessem num mundo isolado, onde só a vida delas interessa", afirma Rigo.
Outro lugar por onde é possível começar a ter relações diferentes com o alimento é dentro da escola. Para isso, nutricionistas - os profissionais que elaboram os cardápios da merenda escolar e definem quais ingredientes serão comprados - também precisam ter contato com variadas fontes de nutrientes durante a formação profissional.
A Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) mantém o Laboratório Horta Comunitária Nutrir (LabNutrir), criado em 2017. De acordo com a coordenadora do LabNutrir e professora do Departamento de Nutrição, Michelle Jacob, a iniciativa surgiu a partir da percepção de que um dos maiores problemas da dieta global e brasileira é a falta de diversidade.
"Trabalhar com alimentação e saúde mostra a importância de pensar na transição agroecológica de produção de alimentos. Entender as especificidades das PANCs é importante para o nutricionista compreender mais sobre a natureza e sobre a cultura onde as transformações serão inseridas", diz Jacob.
Ao entender o universo das PANCs, há um ganho econômico, pois o agricultor vende localmente e o dinheiro circula na cidade. Para quem come, o alimento é mais fresco e a dieta ganha diversidade. No meio ambiente, a produção de alimentos adaptados às necessidades locais demanda menos recursos, como água, agrotóxicos e fertilizantes.
Além do aspecto direto da produção, compra e consumo de alimentos, Jacob destaca a importância de superar o fenômeno conhecido como cegueira botânica, quando a pessoa não tem a capacidade de reconhecer as plantas e entender como elas estão inseridas em diferentes áreas do dia a dia. Para a professora da UFRN, o início da educação sobre as PANCs é uma forma de aprender mais sobre as plantas que existem no entorno.
"Somos extremamente dependentes de plantas, mesmo em grandes ambientes urbanos, desde o consumo de café, de brigadeiro e de roupas. Vencer a cegueira botânica é essencial para enfrentar as crises do futuro. A floresta não é só mato, ela é comida e remédio", afirma Jacob. Para ela, se o objetivo é construir uma geração futura que se preocupe com o desmatamento, é essencial ter uma geração do presente que seja sensível a perceber e a se importar com as plantas.
"A educação pelas PANCs é muito interessante. As pessoas se engajam para aprender e pode ser uma chave para mais projetos de educação ambiental, alimentar e nutricional e que despertem a curiosidade das pessoas", disse.
O potencial do universo PANC é enorme - mas não há bala de prata para solucionar os gargalos dos sistemas alimentares e da crise ambiental. Mesmo sendo um grande defensor das PANC, Kinupp destaca que nenhuma dessas plantas pode ser considerada como uma superfood, a exemplo do que aconteceu com o açaí.
"Não há endeusamento de plantas. Elas não substituem nada da alimentação tradicional, são opções para somar e dar variedade ao cardápio e à matriz agrícola", diz.
Quando este objetivo for atingido, as PANCs deixarão de ser PANCs. O cenário ideal é o de transição: quando as plantas alimentícias se tornarem convencionais, o mundo poderá ser um lugar mais plural, sustentável e saudável.
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