Palhaço preso na 'cracolândia' é médico e já deu abrigo para 8 usuários
Uma fotografia do psiquiatra Flávio Falcone, 42, viralizou na última sexta (2) após ser detido na 'cracolândia', no centro de São Paulo. O motivo? Falcone estava fantasiado de palhaço, um trabalho desenvolvido há mais de uma década. Mas, segundo ele, a ação nas ruas vai muito além da maquiagem.
Com ajuda de doações, o médico afirma pagar estadia para oito usuários em pensões da região. O oferecimento de abrigo foi utilizado pela prefeitura no passado e dados da época mostram que 2 a cada 3 usuários reduziram o consumo de crack.
O abrigo dá a possibilidade de buscar um emprego e é parte da chamada redução de danos, explica. Nesta abordagem, não são exigidas abstinência e tarefas obrigatórias mas, por meio da reinserção social, espera-se a diminuição e até o fim do uso abusivo de substâncias. Segundo Falcone, dos oito ajudados, dois já estão abstêmios das drogas. Quem participa de ações do grupo, recebe um cachê de R$ 50 e, caso deseje, medicação contra os efeitos da abstinência.
Experiência anterior
A tática é a mesma do extinto programa Braços Abertos durante a prefeitura de Fernando Haddad, hoje candidato ao governo de São Paulo. A inspiração é o método canandese de "housing first", ou "casa em primeiro lugar" para frear o uso abusivo. "Nas pensões, eles podem dormir e isso ajuda o tratamento. Na rua, eles descansam com um olho aberto e outro fechado".
As sucessivas operações policiais na 'cracolândia' incentivaram os paulistanos a preferir uma abordagem diferente. Em 2016, o Datafolha mostrou que 69% da população era favorável ao Braços Abertos. Por outro lado, apenas 21% acreditava na eficiência da redução, que foi descontinuada e substituída pela prefeitura de João Doria (PSBD).
O palhaço
Falcone conhece as duas abordagens. No início do Braços Abertos, em 2012, o médico que trabalhava em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, foi convidado a levar o palhaço para a 'cracolândia' com parte do atendimento médico. Com a mudança de gestão, foi demitido com a introdução do programa Recomeço, do governo estadual.
A inspiração vem dos Doutores da Alegria, palhaços voluntários que vão a hospitais para entreter pacientes internados, especialmente crianças e adolescentes. Com o sucesso, foi entrevistado por redes de televisão nacionais.
"A primeira coisa que aconteceu foi eles ficarem com muito medo achando que eu era policial, porque fazia mais de um ano que a única visita que eles recebiam era da polícia", diz.
Além do tratamento psiquiátrico, Falcone começou oficinas lúdicas, como uma rádio comunitária na 'cracolândia' comandada por MC's da região. A maquiagem ajudou.
"O palhaço faz a gente rir pelos erros que cometem e as pessoas ali são pessoas consideradas erradas, banidas ou excluídas da sociedade", diz. "Na perspectiva da redução de danos, a criação de um vínculo é a coisa mais importante para iniciar qualquer tratamento".
Chegando lá, Falcone descobriu que há quem viva há mais de 30 anos e tem mais de uma geração vivendo na 'cracolândia'. Há também ex-moradores que voltaram para ajudar e outros que recaem - das mais variadas profissões, nível educacional e idade. "O tempo todo eles [operações policiais] querem mandar para o albergue separando pessoas, amigos, casais. Isso, obviamente, não funciona", avalia.
Desde junho de 2021, a Operação Caronte da Polícia Civil dispersou usuários pelo centro com a justificativa de prender traficantes. Antes, o chamado fluxo era restrito às praças Júlio Prestes e Princesa Isabel. Até então, afirma ter prendido mais de 100 traficantes.
Em maio, Raimundo Fonseca Junior, 32, foi morto após tiros disparados pelo Garra, grupo armado da Polícia Civil de São Paulo. Atualmente, uma boa parte do grupo está na rua Helvétia, no bairro dos Campos Elíseos.
A prisão e a foto
Nesta sexta (2), Falcone afirma que policiais lançaram bombas para dispersar os usuários. Depois, os agentes indicaram quem seria levado ao 77º Distrito Policial para averiguação. Foi nesse momento que o fotógrafo Danilo Verpa, da Folha de S. Paulo, capturou a imagem do Falcone vestido de palhaço e entristecido entre os dois policiais
Durante a ocorrência, a psicóloga Ludmila Frateschi, 42, teria sido baleada com uma bala de borracha em um dos braços.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública, a detenção foi feita devido à "perturbação do trabalho ou sossega alheios" devido ao aparelho de som usado para a rádio informal feita pelo grupo de Falcone, que foi apreendido pela polícia para uma investigação da prática de "crime ambiental" devido à intensidade do som emitido e pela recusa em apresentar documentos. De acordo com o órgão estadual, o grupo foi liberado após a identificação.
Falcone afirma que os policiais ameaçaram prendê-lo novamente caso retome o trabalho nas ruas da 'cracolândia'. Por enquanto, ele aguarda a decisão dos advogados para saber quando vai voltar às atividades.
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