Analfabeto, filho de escravizados e cozinheiro. Quem foi São Benedito?
Falar de São Benedito sem citar a história dos negros é praticamente impossível. Cultuado em todo o Brasil, em parte da América Central e da África, ele foi um mouro (negro de origem árabe) que viveu no século 16 e que se destacou por sua benevolência, humildade e vocação religiosa. Virou símbolo de humildade e dignidade étnica.
Benedito era analfabeto, mas dava conselhos a teólogos, trabalhou como cozinheiro e faxineiro nos conventos, se destacou por seu trabalho e galgou seu lugar entre a Santidade, tornando-se um dos mais cultuados Santos Negros do mundo.
Para conhecer mais sobre sua história e importância, Ecoa conversou com os membros da Pastoral Afrobrasileira, o Padre e teólogo Luiz Fernando e o Pároco e secretário executivo da Pastoral Afro da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Padre José Enes.
Filho de pais escravizados
Benedito era um homem preto, filho de pais escravizados provenientes do norte da África, nasceu na região italiana da Sicília por volta de 1520. Conquistou a alforria mediante a libertação de seus pais e, por isso, conseguiu ser livre a maior parte de sua vida. Trabalhou como pastor de rebanho de ovelhas e seguiu o ofício de Irmão dentro da Ordem Franciscana.
Aos 21 anos, a convite do Frei Jerônimo Lanza, tornou-se eremita. "Um tipo de especialização na qual as pessoas ficam confinadas, seguindo ordens contemplativas, e vivem de forma quase interna em sua congregação", explicou o teólogo e Padre Luiz Fernando.
Consta em sua história, descrita por diversos biógrafos, que sempre foi muito honesto, zeloso, prestativo, autodidata e com fortes vocações espirituais. Isso o levou a ser escolhido para Superior da Ordem Franciscana.
Assim, passou a viver como Irmão dentro do Convento de Santa Maria de Jesus, localizado na região periférica de onde hoje é Palermo, na Itália, com frades Capuchinhos. Lá, ocupou o ofício de faxineiro e cozinheiro, de onde veio o reconhecimento, mais tarde, como o Santo dos cozinheiros e da luta contra a fome.
Em 1578, foi nomeado Guardião, ou Superior, o equivalente a Provincial de uma ordem religiosa naquele tempo. Faleceu na Itália, em 4 de abril de 1589, acredita-se que aos seus 63 anos de idade, como um simples frade franciscano em total desapego às coisas terrenas. Dedicou grande parte da vida aos negros e pobres daquela região.
Santo cozinheiro
Padre Enes explica que é comum encontrarmos uma imagem de São Benedito na cozinha, com uma xícara de café ao lado. "Isso nunca pode faltar porque é a representação do Milagre do Pão", diz. Ele cita relatos sobre uma reunião realizada na Itália com franciscanos de várias partes do mundo, em que Benedito viu que tinha pouca comida para muita gente e começou a rezar. No fim, todo mundo comeu e ainda sobrou comida. "Por isso, nas celebrações de São Benedito sempre temos cestas de pães para distribuir entre os fiéis, como uma súplica para nunca faltar comida naquela casa", explicou.
Fomos catequizados por uma ideologia muito europeia, que não ajudou a gente a viver a experiência dos santos negros
Padre José Enes, pároco e secretário executivo da Pastoral Afro da CNBB
Santo dos pobres e doentes
Reconhecido também por sua vocação espiritual, Benedito muito cedo foi agraciado por Deus com vários dons carismáticos, principalmente o de alcançar milagres. Dentre eles, a ressurreição de dois meninos, a cura de vários cegos e surdos e a multiplicação de peixes e pães.
Há outro relato que conta que, em uma ocasião, um Bispo visitou o Convento e Benedito, que trabalhava na cozinha ainda, queria acompanhar a reza. "Ele se perdeu no tempo e se esqueceu da comida. Então ele rezou e quando chegou à cozinha já tinham pratos prontos em cima do fogão. Tanto é que hoje ninguém sai de uma Festa de São Benedito sem comer", diz Padre Luiz.
Um analfabeto procurado por teólogos
Conta-se, ainda, que teólogos cruzavam mapas para conversar com Benedito e aprender com ele que, mesmo analfabeto, tinha o dom da sabedoria e o dom da ciência. Além disso, tinha um olhar humanitário para os menos favorecidos. Há relatos de que ele mandava os porteiros não dispensarem nenhum pobre sem antes dar-lhes alimento e ajuda.
Celebrações em várias datas
São Benedito costuma ser celebrado em pelo menos duas datas distintas: em 4 de abril, data de sua morte, e em 5 de outubro, dia em que foi canonizado pela Igreja Católica.
Além disso, as pastorais negras costumam celebrar também a data de fundação de suas igrejas, gerando um verdadeiro calendário de Festas de São Benedito. Segundo os padres, "se fôssemos participar de todas, voltaríamos para casa só no Natal", brincam.
Nas comunidades de religiões africanas, São Benedito é representado pela Imagem de Preto Velho.
O santo e a cultura negra hoje
Conhecido por ser um sinônimo de representatividade para a cultura negra, a história de São Benedito nos mostra que nem mesmo a religiosidade consegue transcender o racismo estrutural da sociedade.
Padre Luiz Fernando explica que Benedito viveu em uma classe social que o distinguia como escravo numa realidade de brancos. "Isso acontecia primordialmente com negros ou mouros. A classificação de negros que conhecemos hoje ocorre somente em período mais moderno, de pós-abolição da escravatura e com a literatura social de Gilberto Freyre (Livro Casa Grande,Senzala), quando conseguimos oficialmente deixar de chamar São Benedito de escravo ou ex-escravo", explicou.
Racismo na religião
No entanto, mesmo com a representação do preto como classe social, continua o pároco, as comunidades pretas ainda se sentem melhor representadas em Igrejas afro, como as comunidades de São Benedito ou as igrejas do Rosário dos Homens Pretos, esta última fundada em 1711 pelos escravos. "Ela surge na lembrança de que os negros não podiam entrar em igrejas de brancos e da elite, que eram favorecidos à época pela religiosidade", esclarece.
Os párocos revelam que hoje 98% das pessoas que frequentam a Igreja do Rosário continuam sendo negras, e a Igreja agora atrai também os imigrantes nigerianos. "Fomos catequizados por uma ideologia muito europeia, que não ajudou a gente a viver a experiência dos santos negros. Hoje você entra numa casa e não vê uma imagem dessas ou, quando vê, ele está na cozinha, o que traz uma lembrança preconceituosa", avalia Padre Enes.
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