Como catar sementes gerou R$ 5,3 milhões para pessoas no Xingu
Na aldeia Moygu do povo indígena Ikpeng, localizada na região do Médio Xingu, mais de 200 pessoas se reuniram entre 8 e 10 de setembro para celebrar os 15 anos da maior rede de sementes nativas do Brasil, a Rede de Sementes do Xingu.
Com maioria indígena, o encontro contou com a presença de coletores, agricultores, lideranças e representantes de organizações vindos de várias partes do país para compartilhar suas experiências.
"Ficamos muito longe nesses dois anos de pandemia, podendo fazer o trabalho só remotamente. Tivemos um recorde de produção, mas dá saudade porque a gente está acostumado a fazer muito junto. O mais bonito foi poder se reencontrar, olhar nos olhos, finalmente se abraçar e comemorar esses 15 anos", diz a Ecoa a diretora-executiva da Rede de Sementes do Xingu.
A Rede é formada por comunidades indígenas, da agricultura familiar e urbanas de Mato Grosso e realiza todo o processo que vai da coleta à comercialização de sementes nativas da Amazônia e do Cerrado. "É uma instituição que não é de indígena e não é de branco, que tem diversidade cultural", define Oreme Ikpeng, 29, ativista e técnico em agroecologia que atua na Rede desde a adolescência.
Até o momento, a organização já coletou sementes de mais de 220 espécies, que se transformaram em cerca de 25 milhões de árvores. Estas jovens florestas ocupam 7,4 mil hectares de áreas anteriormente degradadas.
Além dos benefícios ambientais trazidos pelas sementes com o reflorestamento - quase 99% das sementes coletadas são destinadas a este fim - e o incentivo à agricultura familiar, a Rede tem tido um impacto positivo na vida das comunidades que dela participam.
As quase 300 toneladas de muvuca (mistura de diferentes sementes nativas e adubação verde) comercializadas nesses 15 anos geraram uma renda de mais de R$ 5,3 milhões para os grupos de coletores.
"A criação da Rede foi um incentivo muito grande pra nós", disse a Ecoa Placides Pereira, 73, coletor e agricultor do assentamento Manah em Canabrava do Norte (MT). Segundo ele, a coleta de sementes impulsionou a agricultura familiar e aumentou a renda dos assentados.
Como assim coletar sementes?
Milene Alves, 24, começou a sair para coletar com a mãe em Nova Xavantina (MT) quando tinha 14 anos. No início, não dava tanta importância à atividade ou ao seu significado. Com o tempo, ela foi se envolvendo cada vez mais com a Rede e passou a entender o impacto ambiental e social do trabalho que começa com o olhar atento e o conhecimento dos coletores na busca por sementes nativas.
A Rede conta hoje com cerca de 570 coletores, sendo 65% deles indígenas. Além de sua tarefa principal, eles são responsáveis por planejar, beneficiar ("limpar" as sementes de resíduos e separar as que não estão boas), pré-armazenar e organizar a distribuição das sementes.
O trabalho envolve acompanhar as árvores ao longo do ano e caminhar debaixo de sol forte para recolher as sementes indicadas pela Rede, como urucum e mamoninha. Há um cuidado em não retirar todas as sementes para que o ciclo de vida das árvores continue no local da coleta.
Os territórios de coleta de sementes da Rede estão em aldeias, assentamentos e cidades no entorno do Território Indígena do Xingu, no nordeste de Mato Grosso.
A rede ajuda a restaurar as nascentes e matas ciliares, principalmente da bacia do rio Xingu e Araguaia, e dois dos três biomas daqui do Mato Grosso. É uma das organizações que ajuda a combater as mudanças climáticas.
Bruna Ferreira, diretora-executiva da Rede de Sementes do Xingu
Atualmente, Milene Alves faz parte do comitê diretivo da Rede. A coletora se formou bióloga e está cursando um mestrado na área na Universidade do Estado de Mato Grosso, tudo impulsionado por sua atuação na organização, que também propiciou uma melhora da condição de vida de sua família.
Maioria são mulheres
Além de ter maioria indígena, a força de trabalho da Rede tem 80% de mulheres. Entre elas estão as Yarang, grupo de cerca de 100 coletoras do povo Ikpeng que já apanharam mais de cinco toneladas de sementes.
Para as mulheres, em especial, o trabalho com as sementes gera autonomia e renda, além de benefícios para a saúde mental. Roberizan Marques, 53, faz parte do grupo de coletores de Nova Xavantina (MT) desde 2016. Seu marido já era coletor. Na época, ela passava por uma crise de depressão e chegou a tentar suicídio.
"Na mesma semana, recebi um convite da Rede para participar de um curso de permacultura. Fiquei 11 dias em contato com o solo, as sementes e o silêncio da natureza. Foi ali que descobri o que realmente me fazia feliz. Voltei renovada e a partir daí comecei a participar ativamente dos trabalhos e eventos da Rede. Minha vida se transformou", disse a Ecoa.
A situação financeira da coletora e de sua família também mudou devido ao trabalho na Rede. Eles passaram a poder pagar uma escola particular para o filho, adquiriram um sítio maior e um carro e fizeram melhorias na casa.
"A renda para essa população que está nas periferias do Brasil, nas pequenas propriedades rurais, em assentamentos e dentro das aldeias, em maior parte desassistida, traz um impacto muito importante", afirma a diretora-executiva da Rede de Sementes do Xingu Bruna Ferreira. "A renda que uma mulher gera volta pra família, é aplicada dentro do seu território".
Segundo ela, histórias como a de Roberizan são frequentes na Rede: outras mulheres conseguiram resgatar sua autoestima e saberes de sua comunidade e melhoraram de vida.
"Isso traz um empoderamento feminino que essas mulheres não tinham antes. O trabalho com a semente traz essa reconexão com o essencial, com a terra, com a floresta, reafirma que fazemos parte de todo esse sistema e isso nos dá muita energia e força pra seguir", diz Ferreira. "Está muito além da restauração florestal: ele restaura vidas".
As sementes trouxeram vida abundante não só para o solo e o meio ambiente, mas também para a minha saúde mental e vida financeira. Hoje tenho consciência do meu valor e de que sou capaz de fazer algo importante. Sou feliz, me amo, amo a natureza, a vida e só quero partir depois dos anos 80.
Roberizan Marques, coletora da Rede de Sementes do Xingu
Como a Rede se formou
No começo dos anos 2000, os habitantes da bacia do rio Xingu estavam preocupados com a diminuição do nível de água em seus territórios. Dos esforços de diferentes grupos, articulados pelo Instituto Socioambiental (ISA), surgiu a campanha 'Y Ikatu Xingu - que significa "Salve a água boa do Xingu" na língua indígena kamaiurá.
Uma das estratégias da campanha para recuperar as matas de nascentes e beira-rios era coletar sementes nativas. A Rede realizou sua primeira coleta e comercialização em 2007. Em 2014, a rede se tornou uma associação sem fins lucrativos, ganhando independência do ISA.
O trabalho da Rede é premiado internacionalmente. Em 2020, esteve entre os vencedores do Prêmio Ashden, concedido pela organização de mesmo nome baseada no Reino Unido para soluções climáticas, e em 2022 foi uma das organizações vencedoras do Prêmio Equatorial, iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento que reconhece grupos indígenas em todo o mundo que estão desenvolvendo projetos sustentáveis.
*A repórter viajou a convite da Rede de Sementes do Xingu e do Instituto Socioambiental
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