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'O Xingu é uma ilha de floresta no meio de uma grande cultura de soja'

O ativista indígena Oreme Ikpeng antes de apresentação tradicional de dança feita no encontro que comemorou s 15 anos da Rede de Sementes do Xingu - Erik Vesch/Cama Leão/ISA
O ativista indígena Oreme Ikpeng antes de apresentação tradicional de dança feita no encontro que comemorou s 15 anos da Rede de Sementes do Xingu Imagem: Erik Vesch/Cama Leão/ISA

De Ecoa, no Parque Indígena do Xingu (MT)

28/09/2022 06h00

Vestido para uma apresentação de dança que começaria dali a meia hora, com um cocar de penas brancas, chocalhos nos tornozelos e adornos de cor vermelha, branca e azul amarrados nos braços, nas pernas e no quadril, Oreme sai debaixo do sol forte e entra em uma das casas grandes e frescas da aldeia Moygu do povo Ikpeng, na região do Médio Xingu em Mato Grosso.

Ele tem a voz rouca, em parte pelas muitas conversas em que sua fala vem sendo solicitada nos últimos dias, em parte pela poeira e o tempo seco que se intensificam no Xingu. Apesar disso, não parece cansado ou impaciente.

Depois de um semestre morando em Sorocaba (SP), Oreme está em casa pela primeira vez para o encontro que marca os 15 anos da Rede de Sementes do Xingu, organização em que atua desde a adolescência.

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Aldeia Moygu do povo Ikpeng no Território Indígena do Xingu (MT)
Imagem: Erik Vesch/Cama Leão/ISA

dança ikpeng - Erik Vesch/Cama Leão/ISA - Erik Vesch/Cama Leão/ISA
Dança dos ikpeng no Território Indígena do Xingu (MT)
Imagem: Erik Vesch/Cama Leão/ISA

"Eu fico até sem palavras para explicar esse momento. [Comemorar] quinze anos na minha casa, na minha aldeia, com a minha família", diz a Ecoa. "Fico muito feliz por ter contribuído com essa história".

'Nós indígenas somos engenheiros'

O ativista ambiental do povo Ikpeng e técnico em agroecologia de 30 anos nasceu e cresceu no Território Indígena do Xingu e ali concluiu o ensino médio e técnico, mas queria continuar os estudos. "Desde a minha infância, eu sempre pensei em cursar uma faculdade", conta.

Ainda bem jovem, ele comunicava esse desejo à professora e engenheira florestal Fátima Piña-Rodrigues, que dava cursos de colheita e manejo de sementes nativas na região do Xingu. "Isso eu gravei. Ele falava: 'vou estudar na sua universidade'", diz Fátima, que tem uma relação de longa data com a família de Oreme. Ela conheceu o avô de Oreme, o cacique Melobo, no Xingu ainda nos anos 1990.

Esse sonho levou Oreme a deixar temporariamente sua aldeia para ir para a cidade. Em 2022, ele ingressou no curso de engenharia florestal da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), alocado no campus de Sorocaba.

Oreme - Carol Quintanilha/ISA - Carol Quintanilha/ISA
Oreme Ikpeng na comemoração dos 10 anos do Movimento das Mulheres Yarang, em 2019
Imagem: Carol Quintanilha/ISA

"Fui buscar título, ter um papel dizendo que sou engenheiro florestal. Nós indígenas, que vivemos de meio ambiente, somos engenheiros agrônomos, florestais, tudo", diz. "Eu fui lá na cidade aprofundar meus conhecimentos técnicos e teóricos, aproveitar a tecnologia de lá, [para depois] voltar para cá e continuar com o reflorestamento e com o ativismo".

Oreme já tem um plano. Inspirado pelo trabalho do pai, que constrói as casas da aldeia, ele quer trabalhar com o manejo sustentável das madeiras nativas utilizadas nesse âmbito, como pindaíba e roxinho. "Pretendo plantar para não faltar no futuro", explica.

'A semente é um instrumento de ativismo'

Oreme tinha seus 16 anos quando começou a se envolver com a questão ambiental e social. Seus pais e a avó tinham o desejo de que estudasse medicina. Mas, mesmo gostando de ajudar as pessoas, ele não se via na carreira.

O que o encantou foi a luta do movimento indígena. Oreme se inspirou em figuras como Paulinho Paiakan, cacique kayapó que liderou protestos nos anos 1980 contra a hidrelétrica de Belo Monte, morto pela covid-19 em 2020.

Por volta de 2008, o jovem ikpeng começou a tomar parte nos projetos socioambientais que atuavam no Xingu, como a campanha Y Katu Xingu, mobilização em defesa da água, e a Rede de Sementes do Xingu. Parte de um grupo de jovens indígenas, ele começou a coletar sementes nativas e participar de encontros, feiras e cursos.

Segundo Fátima Piña-Rodrigues, Oreme já mostrava interesse e se destacava nesses cursos que ela e outras pessoas ministravam na região, tornando-se monitor. Com o passar dos anos, a promessa dele se confirmou: hoje, ela é sua professora na Ufscar.

"Ele é muito determinado e tem consciência das dificuldades. Essa consciência não facilita o caminho, mas a persistência o ajuda a atingir suas metas", diz Piña-Rodrigues.

Oreme - Carol Quintanilha/ISA - Carol Quintanilha/ISA
Oreme Ikpeng mostra a Casa de Sementes das Mulheres Yarang para visitantes
Imagem: Carol Quintanilha/ISA

Nessa época, Oreme também apoiou a criação do Movimento das Mulheres Yarang, grupo de coletoras indígenas que começou com 15 mulheres em 2009 e hoje possui cerca de 100 integrantes, tendo coletado mais de cinco toneladas de sementes usadas para restaurar áreas degradadas da Amazônia e do Cerrado.

"A semente é um instrumento de ativismo, de resistência. A missão é muito grande ainda, mas a Rede está fazendo esse papel. Por isso as mulheres continuam", diz.

Até então, segundo ele, a maioria dos projetos nas aldeias eram voltados aos homens, enquanto as mulheres ficavam escondidas. O jovem queria ver suas parentes também se fortalecerem e se beneficiarem com essas iniciativas, o que de fato aconteceu a partir das Yarang. Elas ganharam protagonismo: hoje são muito respeitadas em seus povos - inclusive espiritualmente - e inspiram outras mulheres do Xingu.

[O Xingu] é uma ilha de floresta no meio de uma grande cultura de soja e as sementes estão na terra indígena. Primeiro, questionamos: a gente vai colher sementes e vender para as pessoas que desmataram? Mas a maior preocupação era a qualidade da água. A gente nem bebe mais água do rio porque não sabemos o que tem nela. Então as mais velhas falaram: vamos colher porque tem um benefício para nós que vai além do financeiro.
Oreme Ikpeng, ativista indígena

Indígenas na universidade: 'Ninguém fala quantos permanecem'

A professora Fátima Piña-Rodrigues vê em Oreme uma característica dos indígenas de sua geração: a capacidade de transitar entre a sociedade branca e a indígena, mantendo sempre o orgulho e a consciência de sua origem.

Mesmo assim, a adaptação na cidade não tem sido fácil. "Eu nunca tinha ficado mais de 30 dias fora [da terra indígena]. Foi uma mudança total, radical. Teve um momento em que apertou e eu falei: será que consigo ficar aqui? Mas faz parte da vida, são essas dificuldades que formam a gente", diz.

A alimentação é um dos maiores problemas. Acostumado à dieta natural da aldeia - à base de peixe, beiju, farinha e frutas -, seu organismo não tolera os alimentos industrializados que são mais abundantes e baratos na cidade.

Na universidade, acessar as políticas de permanência também tem sido um desafio. Oreme foi contemplado provisoriamente pelo programa de assistência estudantil, que dá direito a moradia, alimentação e transporte, mas depende de uma regularização para continuar tendo acesso às bolsas a partir de dezembro.

Oreme - Carol Quintanilha/ISA - Carol Quintanilha/ISA
Oreme Ikpeng na festa de comemoração dos 10 anos do Movimento das Mulheres Yarang
Imagem: Carol Quintanilha/ISA

"Muitas vezes se destaca a quantidade de indígenas que entram porque tem cota indígena, mas ninguém fala quantos permanecem nem quantos saem e por que saem. Muitas vezes é pela questão financeira", observa.

Mas ele reconhece que os vestibulares e cotas para indígenas têm aberto muitas portas. Universidades de ponta como a própria Ufscar, e também Unicamp e Unb têm hoje um contingente maior de estudantes indígenas. Oreme cobra sensibilidade das políticas de assistência estudantil para levar em conta as diferentes realidades dos alunos.

"Dizer que todo mundo é igual é a mesma coisa que falar que um peixe, que mora na água, é igual a uma onça, que mora no mato. São todos animais, mas têm especificidades", diz.

Além da permanência, outra preocupação é a possível paralisação das atividades da Ufscar devido ao corte de R$ 2,3 milhões feito pelo MEC no orçamento da universidade em 2022. "Tem risco de não continuar presencial porque não tem recurso. Mesmo que seja online, eu tenho que ficar na cidade porque a internet aqui [no Xingu] não é muito boa.", diz.

Mesmo em meio às dificuldades, Oreme mantém sua militância: "Cheguei na faculdade e já me apresentei como ativista", conta. Ele está envolvido no Núcleo de Agroecologia Apetê Caapuã, grupo de pesquisa e extensão da Ufscar e, à distância, continua participando de atividades da Rede de Sementes do Xingu.

'Bom para os dois lados'

Segundo a professora da Ufscar, o carisma e a liderança dele vêm provocando transformações na universidade. Sensibilizados pelas dificuldades acadêmicas do estudante, que são comuns a outros indígenas, professores de disciplinas básicas do curso de engenharia florestal vem se movimentando pela primeira vez para buscar apoiar o aprendizado desse e de outros grupos.

"As metodologias e procedimentos acadêmicos não estão preparados para receber várias pessoas com necessidade especial e de novas etnias", afirma Piña-Rodrigues. "Não dá para ficar esperando a universidade, então os docentes tomaram para si fazer alguma coisa pra ajudar. Muito disso tem a ver com o Oreme".

Fátima também vê o impacto de sua presença na universidade para inspirar outros jovens indígenas do Xingu e para quebrar preconceitos dos colegas.

"Já temos mais um, um xavante, que está interessado em vir pra engenharia florestal", conta. "E ele está fazendo com o que os alunos da Ufscar vejam os indígenas com enorme respeito. Antes eles tinham medo de não saber lidar, timidez, dificuldade de aproximação. Ele quebrou isso à medida que chega, faz brincadeiras. Ele sabe tudo de música, rap, funk, sertanejo. Ele mostrou que jovens são jovens independente de onde vem. Está sendo muito bom para os dois lados".

*A repórter viajou a convite da Rede de Sementes do Xingu e do Instituto Socioambiental

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