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Existe mesmo 'galinha livre' na indústria de ovos? Entenda

A chef Paola Carosella em vídeo do seu canal sobre receitas com ovos - Reprodução/YouTube/PaolaCarosella
A chef Paola Carosella em vídeo do seu canal sobre receitas com ovos Imagem: Reprodução/YouTube/PaolaCarosella

"Bom dia galinheiro, tudo bem?", cumprimenta sorridente a chef Paola Carosella com uma galinha nos braços. A ave se chama Pinga e entrega o tema do vídeo: cinco receitas feitas com ovos.

Enquanto afaga a galinha, Carosella explica ao que se refere quando fala em "galinha feliz" ou "galinha de vida digna" e mostra diferentes tipos de ovos disponíveis no mercado. A cozinheira, empresária e ex- jurada do MasterChef defende mudanças no sistema alimentar fomentadas por políticas públicas.

Assim como a chef, quem vai ao mercado hoje tem chances de encontrar várias categorias de ovos: além dos convencionais, há os caipiras, os orgânicos e os livres de gaiola. Essas categorias se multiplicaram nos últimos anos em nome da sustentabilidade e do bem-estar animal.

Sem gaiola é melhor?

A ideia de galinha feliz ou de vida digna pode parecer abstrata, mas tem uma definição bem específica. "Uma galinha feliz é aquela que pode expressar o seu comportamento natural o tempo todo", explicou a Ecoa Luiz Mazzon, diretor do Instituto Certified Humane. Isso compreende quatro atividades básicas: ciscar, botar ovos em ninho, tomar banho de areia e se empoleirar.

No sistema convencional, responsável por cerca de 95% da produção de ovos no Brasil, elas não têm espaço para nada disso. São criadas em gaiolas empilhadas e, em média, cada uma fica confinada em um espaço menor que uma folha A4, o que gera uma série de impactos negativos para a saúde delas.

Essa produção intensiva tem ainda outros problemas, como o emprego de ração de origem transgênica, exposta a agrotóxicos e o uso indiscriminado de antibióticos nas aves, que provocam danos ambientais e à saúde humana.

Nesse cenário, algumas das maiores granjas do país, como Mantiqueira e Faria, anunciaram compromissos para ampliar a produção de ovos de galinhas livres de gaiola nos próximos anos, a exemplo de um movimento que vinha acontecendo internacionalmente.

Segundo dados do Observatório Animal, mais de 150 empresas de varejo também se comprometeram a encerrar até 2028 a compra de ovos ou derivados provenientes de sistema de gaiola no Brasil, incluindo Carrefour, GPA (Pão de Açúcar, Compre Bem e Extra), McDonald's e Nestlé.

Para os consumidores, a multiplicidade de tipos de ovos muitas vezes gera dúvidas. O que cada classificação implica? É possível saber se realmente estamos comprando ovos mais saudáveis, sustentáveis e produzidos sem sofrimento animal?

Mais de 150 empresas de varejo se comprometeram a encerrar até 2028 a compra de ovos ou derivados provenientes de sistema de gaiola no Brasil - Rodrigo Capote/UOL - Rodrigo Capote/UOL
Mais de 150 empresas de varejo se comprometeram a encerrar até 2028 a compra de ovos ou derivados provenientes de sistema de gaiola no Brasil
Imagem: Rodrigo Capote/UOL

Tipos de ovos

  • Livre de gaiola ("cage free") - criação de galinhas poedeiras sem gaiolas, normalmente dentro de galpões
  • Ao ar livre ("free range") - criação em uma área aberta, como um pasto ou gramado
  • Caipira - as aves são criadas fora de gaiolas, têm acesso à área externa, sendo recolhidas à noite e sua alimentação pode incluir frutas e vegetais; produção é regulada por uma norma técnica
  • Orgânico - as galinhas recebem alimentação orgânica, sem agrotóxicos ou ingredientes transgênicos, e não podem ser medicadas com antibióticos ou promotores de crescimento; produção é regulada por uma lei.

Dá para confiar?

De forma geral, produzir ovos em um sistema livre de gaiolas pode ser visto como um avanço, principalmente em relação ao bem-estar animal.

O coordenador do programa de consumo sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Rafael Arantes, vê o movimento das granjas e redes de varejo como desejável: "Nossos sistemas alimentares e as relações de produção e consumo precisam ser modificados de forma urgente", disse a Ecoa.

Ao mesmo tempo, pela falta de regulamentação dessas categorias no Brasil, ele enfatiza que as alegações de produtores de ovos brasileiros sobre sustentabilidade podem cair no greenwashing.

"Esse movimento em direção à sustentabilidade é necessário, mas o que os consumidores querem e a sociedade precisa é que as empresas tenham a capacidade de comprovar aquilo que estão falando", complementa.

Entre as diferentes nomenclaturas de ovos, o selo de orgânico é o único regulamentado por lei até o momento. Ele prevê que as galinhas sejam alimentadas com insumos sem agrotóxicos ou ingredientes transgênicos, além de não receber medicamentos de forma indiscriminada. A produção de alimentos orgânicos no Brasil é fiscalizada e certificada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Já produção de ovos caipiras no Brasil segue uma norma técnica de 2016, segundo a qual a galinha deve ser solta no galpão, ter acesso ao piquete (área destinada à postura de ovos) e receber preferencialmente ração de origem vegetal. Embora o consumidor associe o ovo de casca vermelha e tamanho menor à categoria, isso não é suficiente para dizer se o produto é caipira ou não.

A recomendação de Arantes é ficar de olho na embalagem. "Quando não existe informação nenhuma, não tem o selo de orgânico nem outros complementos, significa que provavelmente são ovos de galinhas criadas em gaiolas, naquele modelo intensivo de produção", alerta.

'Não é só soltar a galinha'

Mesmo sem ter uma lei que regule ou exija a criação de galinhas livres de gaiola, a produção de ovos nesse sistema alternativo vem crescendo no país e é avaliada por entidades privadas.

No Brasil, um dos pioneiros a fazer isso foi o Instituto Certified Humane, representante brasileiro de uma organização que busca melhorar a vida de criações de animais em diferentes países.
Em relação à produção de ovos, a primeira empresa a receber o selo de bem-estar animal do instituto foi a Korin, em 2010. Hoje, o instituto já certificou cerca de 120 granjas de diferentes tamanhos, que contam com 3,8 milhões de aves.

Para o diretor do Instituto Certified Humane, Luiz Mazzon, a falta de definição jurídica torna vaga a classificação como "livre de gaiola". Na norma do instituto, a criação fora de gaiolas é um requisito básico, mas inclui uma série de outros requisitos que garantem um ambiente de bem-estar. "Não é só soltar a galinha", diz.

O selo também controla as informações colocadas na embalagem do ovo, incluindo imagens: para ser certificada, uma granja que não cria galinhas ao ar livre, por exemplo, não pode usar a foto de uma galinha ciscando na grama.

Por conta de certificadoras "oportunistas", mesmo quando a embalagem leva algum tipo de selo, Mazzon aconselha: "o consumidor tem que se informar muito bem sobre as normas que estão por trás. Hoje qualquer um pode lançar seu selo".

Instituto já certificou cerca de 120 granjas de diferentes tamanhos, que contam com 3,8 milhões de aves - Rodrigo Capote/UOL - Rodrigo Capote/UOL
Instituto já certificou cerca de 120 granjas de diferentes tamanhos, que contam com 3,8 milhões de aves
Imagem: Rodrigo Capote/UOL

Como tornar acessível?

Soltar as aves exige um aprendizado dos produtores: o sistema sem gaiolas requer outros cuidados com as galinhas e demanda investimento. Por ainda ser exceção no mercado, esse tipo de produção acaba saindo mais caro, o que também eleva os preços para os consumidores.

Por isso, a organização de proteção animal e ambiental Alianima tem buscado incentivar a transição sem deixar as granjas menores para trás. Ela faz a ponte entre varejistas que se comprometeram com o "cage free" e fornecedores que já produzem sem gaiolas.

"A produção de ovos aqui no Brasil é muito realizada por pequenos e médios produtores. A gente não quer que esse movimento seja socialmente irresponsável, que esses produtores quebrem", disse a Ecoa a presidente e diretora técnica da Alianima, Patrycia Sato.

Em relação ao consumo, ela vê a formação de nichos como parte do processo de transformação do setor e selos como o de orgânico e Certified Humane ajudam a nortear as pessoas. "Mas a longo prazo a gente gostaria que bem-estar animal não fosse uma exceção, que fosse o básico do básico, a regra", disse.

Para o coordenador do programa de consumo sustentável do Idec, Rafael Arantes, há espaço para que a produção de ovos em sistemas fora de gaiolas cresça, como já vem acontecendo, e que consiga "sair da bolha".

"Existem formas de ser feito. É mais que uma tendência, a gente precisa que isso seja incentivado para facilitar cada vez mais o acesso", disse.

Errata: este conteúdo foi atualizado
O sistema convencional de produção de ovos não utiliza hormônios, ao contrário do que afirmava a primeira versão do texto. A informação foi corrigida.