Mineiros colhem flores que 'vivem para sempre' e são reconhecidos pela ONU
Em Minas Gerais, na região da Serra do Espinhaço, um povo resiste há mais de um século. São os apanhadores de flores sempre-vivas. O termo tem a ver com a característica das flores do Cerrado: mesmo fora da terra, as plantas são desidratadas e preservam a cor e o formato. Ficam, assim, sempre vivas.
A resistência também é uma característica dos próprios apanhadores. Unidos, sobreviveram às adversidades, que poderiam extingui-los. A apanhadora Maria de Fátima Alves, a Tatinha, sabe bem.
Os apanhadores vivem uma vida comunitária. Há áreas comunitárias para gado e plantio de comida. As flores são as principais fontes de renda e toneladas são vendidas para Minas, Brasil e exterior. A região, porém, virou alvo do interesse econômico de poderosos. "Há mais de 30 anos, as cercas chegaram", relembra Tatinha.
Aos poucos, grileiros fincaram cercas e venderam terras. A monocultura também foi instalada em fazendas e as conhecidas mineradoras mineiras se instalaram ali. O alerta foi aceso.
Uma interferência ambiental nestas proporções pode impactar drasticamente a dinâmica dos apanhadores. Todos os anos, cerca de 350 espécies endêmicas do Cerrado são colhidas. Entre elas, há 90 espécies de flores e botões, usados em artesanatos, buquês e lembrancinhas.
Os apanhadores se dividem entre o trabalho a 1400 metros de altitude, onde criam gado, e os "pé-da-serra", onde praticam agricultura e criam animais de pequeno porte nas regiões com menores altitudes.
As flores são coletadas nas épocas com menos chuvas. Nos chuvosos, o trabalho é focado na agricultura e na geração do próprio alimento. Além da comida, há o cultivo de plantas medicinais.
O conhecimento é transmitido há gerações e só a família pode dominar o cultivo, a colheita e a criação de animais e plantas em diferentes períodos e climas do ano. Mas demorou até serem ouvidas.
Unidades de conservação
Nos anos 1990 e nos anos 2000, um parque estadual e um parque nacional foram criados para conservar a Serra do Espinhaço. O projeto da União era ambicioso: quase 125 mil hectares de parque nacional, o que dá metade da cidade de São Paulo. Justamente onde viviam apanhadores.
Em instalações desse tipo, a população local costuma ser consultada. Apesar da proteção positiva para o território, Tatinha diz que os apanhadores foram ignorados no processo, embora fizessem uso sustentável há séculos.
Segundo ela, uma das consultas foi feita em uma escola e incluiu até assinaturas de adolescentes. Nos anos 2000, para discutir a ampliação do parque nacional, diz que a consulta foi online. "Quem dos apanhadores tinha internet em 2002? Muitos apanhadores ainda não têm", diz. Nos dois casos, ela afirma que só foram informados após a execução do projeto.
Eles queriam ser reconhecidos, ouvidos, e tomaram uma decisão. Era hora de se unirem.
A união
Em 2010, os apanhadores criaram uma comissão. "É um direito dessas comunidades serem ouvidas", diz Fernanda Monteiro, geógrafa e pesquisadora dos modos de vida das apanhadoras de flores da USP (Universidade de São Paulo).
Segundo ela, as plantações, a mineração e a criação de unidades de conservação jogaram os apanhadores de um lado pro outro, sem respeito ao conhecimento e ao domínio do território. "Isso coloca os grupos numa condição vulnerável, porque quem vem de fora acha que pode entrar e fazer o que quiser".
Os apanhadores - divididos em 15 municípios - foram às câmaras municipais para apresentar e defender a história da produção sustentável nos territórios onde ocupam. Pouco a pouco, tornaram-se compreendidos como um povo tradicional equivalente aos caiçaras, quilombolas e indígenas, e a dialogarem com a classe política mineira e nacional.
Com mais de oito anos de associação, eis uma boa notícia. Em 2018, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu os apanhadores de flores sempre-vivas da Serra do Espinhaço como Patrimônio Agrícola Mundial Brasileira. Após o reconhecimento, criaram um protocolo para definir como deverão ser consultadas para dar autorização para a entrada em suas terras.
Desde 2020, os apanhadores promovem um festival próprio. Neste ano, uma sessão de cinema em Diamantina exibiu um documentário que narra a trajetória do grupo ao longo das décadas. Jovita Correia, apanhadora da comunidade quilombola Mata dos Crioulos, se emocionou. "Eu lembrei de toda a nossa história de força e luta para garantir nossos direitos", diz. "Foi um trabalho emocionante.
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