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Origens

As Histórias Que Nos Trouxeram Aqui: um resgate histórico da construção de identidade de pessoas negras


Psicóloga explica principal instituição criada por escravizados: 'família'

Daniele Dutra

Colaboração para o UOL, do Rio

23/10/2022 04h00

"Se a gente pensar em termos da escravidão, a principal instituição que as pessoas negras construíram foram as próprias famílias". É o que explica a psicóloga Reimi Solange Chagas, professora de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e autora do livro "A união faz a força: expressões do mito familiar em famílias negras".

Dedicada a estudar como crenças, mitos e valores orientam as famílias negras no Brasil, Reimi participou de "Origens: as histórias que nos trouxeram aqui", evento promovido por Ecoa, na terça (18). Segundo ela, a família também foi uma forma de sobrevivência e resistência da população negra, especificamente a preta, durante o período escravocrata. "A gente está falando de um legado de muita força", disse. A professora também mostrou como traumas e consequências sociais deste período se reverberam até os dias de hoje na sociedade.

Segundo Reimi, o regime de escravidão no Brasil sempre dificultou a formação de famílias de africanos escravizados e seus descendentes, seja pelas violências sofridas por conta do trabalho forçado, das interferências dos chamados 'senhores de escravos' no cotidiano dessas pessoas ou até mesmo pela impossibilidade do exercício da maternidade — muitos filhos gerados nas relações de casais escravizados eram vendidos ou destinados como "itens de herança" entre as famílias escravocratas.

A psicóloga Reimi Solange Chagas é autora do livro "A união faz a força: expressões do mito familiar em famílias negras”. - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A psicóloga Reimi Solange Chagas é autora do livro "A união faz a força: expressões do mito familiar em famílias negras”.
Imagem: Arquivo pessoal

Por um longo período as relações entre escravizados não eram permitidas na maioria das regiões do país. Em determinado momento da história, elas só eram permitidas na região Sudeste, por exemplo, que era uma das mais prósperas economicamente por conta do comércio de café. "Estas famílias escravas puderam existir, ainda que com muito custo", explicou.

Se por um lado a estrutura da sociedade escravocrata não permitia a constituição de uma relação afetiva e social estável entre os escravizados; por outro, o período do pós-abolição, diz a psicóloga, também não trouxe às pessoas escravizadas as estruturas sociais necessárias para que de fato tivessem arranjos familiares.

"Somente em 1888, com a abolição, que as pessoas conseguiram construir suas famílias sem essas interferências, mas com muitas dificuldades nas políticas públicas"
Reimi Solange Chagas, psicóloga

A abolição, então uma novidade na época, trouxe novos desafios às famílias negras no Brasil, especificamente as famílias pretas, ou seja, as não interraciais; explicou a professora. Na construção de um novo formato de sociedade, a população negra ficou de fora do planejamento de políticas públicas do Estado, seja por reparação pela escravidão ou de apoio social. Esta ausência de ações afirmativas específicas para famílias pretas persiste até os dias atuais, segundo Reimi.

"Isso acabou forjando os fenômenos de iniquidade racial, mas principalmente impossibilitando estas famílias [pretas] de alcançarem a integração na sociedade e experimentarem uma mobilidade social independente", explicou.

À apresentadora de Origens, Semayat Oliveira, Reimi explicou como a negação do Estado em fornecer educação de qualidade à população negra impactou no perfil de trabalho destinado a ela e, consequentemente, à renda que o núcleo familiar tinha condições de conseguir com a sua força de trabalho. "A pobreza vai impactar as pessoas tanto individualmente, no curso do seu desenvolvimento humano, mas também no grupo, no sentido de afetar o ciclo de vida nas famílias", disse.

"Esta questão da mobilidade social das famílias, obviamente, impactou os sujeitos no sentido de colocá-los em uma situação socioeconômica de pobreza. E a pobreza tem uma característica multidimensional que impacta o sujeito não permitindo ele de desenvolver os seus potenciais"
Reimi Solange Chagas, psicóloga

Quarta temporada

Promovido por Ecoa, Origens está em sua quarta temporada. O evento deste ano teve como mote "As histórias que nos trouxeram aqui", e aconteceu ao longo desta terça-feira (18), com transmissão online nas plataformas do UOL.

Ao todo, foram seis painéis em que pessoas, entre celebridades e ilustres anônimos, contaram como buscaram respostas sobre o seu passado ou agiram para transformar, cada qual à sua maneira, seus núcleos familiares.

Os intervalos de cada painel contou com apresentações de slam conduzido pela poeta e compositora Bell Puã e de stand up liderado pela humorista e apresentadora dos programas Splash Show e Otalab, do UOL, Yas Fiorelo. A apresentação e mediação dos encontros foi feita pela jornalista Semayat Oliveira.