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Origens

As Histórias Que Nos Trouxeram Aqui: um resgate histórico da construção de identidade de pessoas negras


'Feliz por saber meu nome', diz aposentada que achou irmãs após 6 décadas

Lucas Veloso

Colaboração para o UOL, de São Paulo

25/10/2022 04h00

A história da aposentada Selma Aparecida Gomes Moura, 77, e da neta dela, a analista contábil Ingrid Gregório, renderia um enredo de novela. Deixada pela família biológica em um orfanato para adoção quando tinha por volta de 5 anos, Selma acabou sendo criada pela funcionária de uma escola em Belo Horizonte.

A separação da família também apagou parte das raízes dela. Desde que ela começou a entender o que havia acontecido, ainda na juventude, seu maior sonho foi reencontrar o pedaço perdido de sua história. A situação só foi revertida quando a neta foi essencial, como as duas contaram emocionadas durante "Origens - As histórias que nos trouxeram aqui", evento promovido por Ecoa na semana passada.

Na tentativa de encontrar parentes mais próximos, Selma escreveu e enviou cartas a programas de televisão que promoviam encontros entre pessoas que não se viam há anos. Também acionou rádios locais e distribuiu o texto a quem se dispusesse a ouvir. Tudo para tentar alguma pista.

Em uma das cartas, escrita em 2014 e copiada outras dezenas de vezes mais ao longo dos anos, a aposentada dizia o seguinte:

Triste vida a minha. Não ter pai nem mãe ou um parente me dá uma dor no coração, desespero, tristeza. Imagina nem uma notícia má, notícia ruim. Nem uma pista. Nem a origem de onde vim, [onde] nasci, meu nome verdadeiro. Falo assim para as pessoas quando me perguntam: 'tenho hoje 69 anos porque não sei quantos anos eu tenho'."
Selma Aparecida Gomes Moura, aposentada

Durante o painel, conduzido pela jornalista Semayat Oliveira, Selma disse que a falta de respostas e informações a deixava preocupada.

"Saber que minhas filhas não tinham tia. Eu sem saber meu nome, quem era minha mãe, de onde eu vim, para onde eu ia, sem conhecer ninguém. Tinha esperança, mas sem pista nenhuma. Às vezes eu ia fazer ficha e contava a história direitinho. Não sei porque ninguém nunca se interessou", lembrou.

Selma não sofria sozinha. A neta Ingrid também não suportava ver a tristeza e a busca sem respostas da avó. Foi então que ela teve uma ideia. Depois de ver um programa em que judeus faziam testes de DNA para reunir suas famílias, ela procurou alguma solução similar no Brasil.

Ingrid recorreu a um laboratório que realiza exames de DNA e permite fazer busca por familiares em sua plataforma. Com o resultado em mãos, o cliente pode submetê-lo ao sistema que levanta similaridades com o material genético de outras pessoas já testadas e que também procuram parentes.

"Quando ela falou [do teste] fiquei com a esperança, de coração. Ainda mais por ser DNA. Imaginei que, com exame de sangue, já dava para conseguir, mas, graças a Deus, minha neta descobriu", emendou a idosa.

Família encontrada

Como a avó mora em Minas Gerais, Ingrid só conseguiu aplicar o exame a ela quando Selma foi visitá-la no Rio de Janeiro, durante um fim de semana. A partir daí, começou a angústia da espera.

"Já sou uma pessoa assim naturalmente, mas fiquei super ansiosa. Todos os dias entrava no meu e-mail para saber se eu recebi o resultado. Até que um dia apareceu. Liguei para minha irmã e abrimos", pontua Ingrid.

A ideia da dupla era anunciar os resultados à avó em um churrasco no Dia das Mães junto da família. Ingrid, porém, achou que não fazia sentido guardar para si uma informação que a avó ansiava saber há décadas. "Eu pensei: 'Quer saber? Hoje em dia, tem muita tecnologia'." A saída foi marcar uma chamada via WhatsApp. Avisados de que o assunto era importante, mas sem saber do que se tratava, os familiares começaram a especular.

Às 20h do dia combinado, a expectativa estava alta na família. Uns apostaram que alguém revelaria uma gravidez, outros falavam de dinheiro ganho na Loteria. Logo, souberam que o impossível havia acontecido: depois do exame, a plataforma indicou pessoas que poderiam ser parentes da família perdida de Selma. Com a possibilidade de haver um reencontro da avó com suas irmãs, a emoção tomou conta.

Todo mundo chorou. Foi emocionante ver a minha avó sorrindo com a história, de orelha a orelha."
Ingrid Gregório, analista contábil

'Tenho nome'

Com o nome da possível parente em mãos, o trabalho a seguir foi encontrar via redes sociais o restante da família. O empenho deu certo. Ingrid achou as irmãs de sua avó. Dias depois, o encontro aconteceu. Para a neta, o clima de surpresa foi a mesmo captado naqueles programas de televisão.

"Ver minha avó não sabendo a origem e o nome é muito doloroso para nós. No Dia das Mães, ela sempre saia, ficava retraída, viajava. Via minha avó triste, chorando", contou a neta. Durante o encontro, Selma ouviu sua história e descobriu um fato inusitado. Seu nome de registro era Maria das Graças de Assis. Ela já está se mobilizando para mudar os documentos.

As lágrimas ainda escorrem nos rostos da avó e da neta enquanto elas rememoram tudo o que aconteceu.

Nossa Senhora. É uma vida, né... Estava me sentindo muito alegre de saber que encontraram a minha família, que todo mundo havia falado que era difícil demais. Hoje, fico feliz por saber que eu tenho nome, tive mãe, pai e não saí do oco do pau."
Maria das Graças de Assis, aposentada

Quarta temporada

Promovido por Ecoa, Origens está em sua quarta temporada. O evento deste ano teve como mote "As histórias que nos trouxeram aqui", e aconteceu ao longo desta terça-feira (18), com transmissão online nas plataformas do UOL.

Ao todo, foram seis painéis em que pessoas, entre celebridades e ilustres anônimos, contaram como buscaram respostas sobre o seu passado ou agiram para transformar, cada qual à sua maneira, seus núcleos familiares.

Os intervalos de cada painel contou com presentações de slam conduzido pela poeta e compositora Bell Puã e de stand up liderado pela humorista e apresentadora dos programas Splash Show e Otalab, do UOL, Yas Fiorelo. A apresentação e mediação dos encontros foi feita pela jornalista Semayat Oliveira.