Pode ser uma escritora?
Nem sei por que eu perguntei isso. Quando me convidaram para fazer um perfil, aqui em Ecoa, de alguém que esteja fazendo a diferença no mundo. Transformando o Brasil, digamos.
Como se uma escritora, um escritor, não conseguisse mudar a vida da pátria nem de ninguém. E não muda mesmo. Sempre quando me perguntam se eu escrevo para recuperar alguém, eu respondo, na fé: não sou igreja.
Nem a igreja opera tamanho milagre. A lágrima da santa é vinagre. Não se lembra? O fato é que não posso prometer nenhuma graça, na desgraça, divina.
Cheguei a perguntar para a escritora Marta Neves: você, que também é artista plástica, o que quer com a sua escrita, com a sua arte? O mundo precisa de você, mulher?
Ela, a quem escolhi para falar a respeito nessas linhas tortas, foi logo dizendo: "o povo precisa de cerveja. E de um torresminho. Deixa eu sozinha na minha. Não faço a mínima diferença".
Não deixa de ser uma crença a total descrença.
Marta, nascida no atrasado ano de 1964, é mineira de Belo Horizonte. Horizonte nenhum à vista então. Uma vez indaguei o belo-horizontino Ricardo Aleixo: a poesia salva? "Não salva, saliva". Disse o poeta, colocando uma letra "i" depois do "sal".
Eta danado!
Marta Neves me dá água na boca. Porque é boa de cerveja. Companheira de uns bons goles e tragos quando vou a Beagá. Quando ela vem a Essepê.
Aliás, o primeiro livro dela de contos já tem um nome embriagador: "3 Barrigudinha 10 Real". Publicado por um pequeno selo, de uma galeria de arte, em plena pandemia no ano de 2020, na contracapa já está estampado o aviso: "Escrevo porque não tenho nada a dizer no bar. Lá, no bar, eu só choro escondido e olho".
E o que chora?
E o que vê?
Muito feôfó de cachorro. Em tempo: a capa do 3 "Barrigudinha" é um rabo de um cachorro sem rabo (o desenho é de autoria da própria Marta). Em tempo: o livro saiu pela Nunc Livros, projeto do curador de arte Júlio Martins. Em tempo de novo: Barrigudinha é aquele tipo de cerveja gordinha. Garrafas à venda no Bar da Paula, reduto dos derradeiros boêmios mineiros, trocando de pernas à saideira dos inferninhos.
Ela diz que escreve com a alma na lama. Chafurdando seus olhos verdes - mais de lodo do que de esperança - em gente simples, diaristas do cotidiano, atendentes de pronto socorro, vendedoras de doce de cidra, representantes da Avon que usam blusinhas de "cozinhar arroz em casa".
Também tem lá, em uma das narrativas, um cão com câncer, "uma vez me disseram que eu faço uma arte vira-lata e eu gostei".
A gente lê as histórias de Marta para se reconhecer. Sei lá, bate uma melancolia e eu fico esperando o tempo passar. E o tempo não passa. Arrasta-se feito uma perna dormente, que dormiu vendo TV de hospital. Recentemente eu tive que acompanhar um sobrinho na Santa Casa de Sertãozinho. Assisti a muito Vale a Pena Ver de Novo. Lembrei-me, no pronto-socorro, das narrativas de Marta. Meu sobrinho amarelo, à minha frente, morrendo de cirrose hepática. Marta foi a minha imaginária companhia. Porque isso que ela faz, com seu heroico repertório, se chama "solidariedade".
Duvido que ela vá gostar dessa palavra, "solidariedade". Nem eu gosto.
Você salvou o meu mundo, Marta.
Afirmo, contraditório e melodramático.
Outra vez, na reabertura do Museu da Língua Portuguesa, ela participou de uma mostra como artista plástica. Cutucaram-me fundo as suas faixas pintadas à mão, todas da série "Não Ideias" - também, faz um tempinho, expostas na entrada do MAM de São Paulo.
Ela pensa em palavra. Ela traz a palavra para dentro da imagem. Diz que quer esvaziar a imagem. Matar a ideia. Esse patrimônio que todo artista amarrou no pé: a ideia. Ter obrigação de ter ideia o tempo inteiro. "Que merda! Neca. Minhas réguas nunca traçaram linhas retas". Ela se refere às réguas que não usou no curso de Arquitetura. Curso que ela trocou depois pelo curso de Belas Artes. Foi professora de História da Arte na PUC Minas. "Lá, aprendi a odiar o Cristianismo". E vocifera: "os padrecos da PUC me levaram embora, de uma vez por todas, qualquer resquício de amor a Cristo. Jesus foi para o saco. Passei a andar com travestis e eles, os padrecos, me expulsaram da Pontifícia Universidade Católica". Para nossa glória. Conheci Marta Neves já fazendo parte de outra academia, a Academia Transliterária. Embora cis, ela se misturou. Uma vez, questionou se tinha o direito de fazer parte do grupo ao lado de homens trans, mulheres trans, travestis, gays, lésbicas. Sentiu-se incomodada por não ser esse, diretamente, o seu lugar de fala. Ouviu do amigo JoMaka, um dos fundadores da Academia: "não precisamos de ajudantes, não somos coitadinhos, coitadinhas. Ou você está com a gente ou não está".
E ficou.
Conheço a Transliterária. Certa vez, inclusive, recebi das mãos de artiste Ed Marte (nosse grande amigue) um título honorífico pelos serviços prestados à causa. Um verdadeiro honoris causa para se ter muito orgulho. Viva e salve e salve. Ave! Quanta gente boa nessa Academia sacode a geografia das coisas, a exemplo da cantora Brisa Alkimin. Digo: gente que interfere, se junta, mutuamente se apoia a partir do afeto, do respeito, do enfrentamento.
Marta é uma dessas forças da natureza. Falo isso para ela, olhando fundo, por dentro de seus olhos verdes-capim. Ali, germinando flor no meio-fio. Dando suporte a quem se segura no poste para, lá de cima - apertado ou apertada depois de muitas barrigudinhas -
mijar luz.
"Nasci assim capim."
Marta não disse a frase acima. Eu quem saio colando nela umas expressões minhas. Ela vive transformando o que eu penso e a gente seguirá se misturando - seu próximo livro de contos, ainda sobre cadelas e cachorros, sairá no ano que vem pela Ateliê Editorial de São Paulo. E tem um espetáculo de teatro que está a caminho, lá em Brasília, dirigido por Fernanda Jacob e Tatiana Carvalhedo.
Ou a gente está junto ou não está, mulher. É ou não é?
Ela há de concordar. E mesmo que não concorde, faço alarde de sua literatura e de sua arte, e grito, sempre que posso, pelas quinas dos quatro cantos (ao lado de críticos e curadores feito Agnaldo Farias): Marta Neves é uma artista que a gente precisa acompanhar. À saideira dos inferninhos. Ao lado dela trocando de pernas, sempre, para poder caminhar.
Este texto faz parte da série Brasil que Dá Certo, confira todos textos do especial aqui!
MARCELINO FREIRE é escritor. Nasceu em Sertânia (PE), em 1967. Escreveu, entre outros, o romance "Nossos Ossos" (Editora Record 2013). Recentemente, saiu pela José Olympio uma "Seleta" reunindo seus contos preferidos.
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