Em 1987, na Assembleia Nacional Constituinte, Ailton Krenak, usando um terno branco, pintou o rosto de preto com jenipapo num ritual Rin'tá, (que no idioma krenak significa "armado de luto e guerra") enquanto discursava diante de mais de quatrocentos parlamentares em defesa dos direitos indígenas. Esse acontecimento é hoje parte da história do Brasil, não só pelo efeito político que teve, mas também porque trouxe à tona um pensamento e uma lógica até então desconhecidos da cultura ocidentalizada neste país. Uma lógica que aponta para um modo de viver e de compreender o mundo, que extrapola categorias binárias como vida e arte, guerra e paz, passado e presente, ruptura e permanência. Porque, para além das palavras, o que nos toca é o ritual, os gestos, os movimentos das mãos, a expressão do olhar. É como se Ailton instaurasse naquela assembleia, um ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, um tempo ancestral, e nos falasse a partir dessa outra temporalidade, uma fala do corpo, dos silêncios. Uma fala que era também de todos os indígenas que o acompanhavam em Brasília, e de todos os que vieram antes, e dos que viriam depois, todos aqueles que os séculos de colonialismo tentou e vem tentando silenciar. Ali, nesse momento em que mortos e vivos se encontram, nesse instante mágico podemos ouvir as palavras de Ailton: "Os senhores não poderão ficar omissos, os senhores não terão como ficar alheios a mais esta agressão, movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena (...)". Palavras que, infelizmente, continuam atuais, mas também palavras que voam como flechas em direção ao futuro.
Mas Ailton Krenak não começa sua trajetória nesse ato nem a restringe a ele, pelo contrário. Hoje ele é uma das principais vozes do movimento indígena e certamente um dos grandes pensadores deste país. Um pensador que faz questão de remeter à tradição oral, que desenvolve suas ideias a partir do improviso, dos afetos, do corpo, daquilo que surge para além do intelecto, ou nas suas próprias palavras "na coreografia enquanto caligrafia". Ao mesmo tempo, é um pensador com extremo rigor, e sua fala clara e vibrante, que se move entre o ensaio e a poesia, pode ser transcrita quase sem adaptações. De certa forma, toda fala de Ailton é um discurso-performance, pois ele traz para a vida aquilo que o mundo ocidentalizado mantém restrito ao espaço da arte, dos museus: o ato, o tempo fora do tempo, o aspecto mágico do mundo, a travessia.
Assim, Ailton Krenak vai tecendo uma grande teia que se estende em várias direções, estabelece o diálogo com outros povos originários num movimento continuo de resistência, mas se volta também para nós dizendo o que tem que ser dito, nos lembrando quem somos enquanto nação, nos perguntando quem queremos ser, sempre apontando para o fato de que ignorar a existência dos povos indígenas não os fará desaparecer, e nem mesmo o seu extermínio físico os fará desaparecer. Que sejamos capazes de ouvir o que Ailton Krenak tem a nos dizer, que sejamos capazes de ouvir não só com a razão, mas também com a alma, e que suas palavras possam ressoar em toda a sua potência, que elas nos afetem e nos transformem
Os povos indígenas continuam resistindo à longa noite dos (mais de) quinhentos anos, mas não são só alteridade, estão em nós, em nossos silêncios, na terra que pisamos, na floresta, nos rios que fluem canalizados sob o asfalto das grandes cidades, nas palavras que esquecemos, e também em nossas veias, em nosso DNA, e na história de violências que carregamos. Pois o Brasil não é uma nação de "brancos europeus", tampouco é uma nação de "mestiços assimilados", ao contrário, o Brasil é uma nação multicultural, plurilinguística, multiétnica, o Brasil abrange uma série de povos e alteridades. Enquanto não formos capazes de incorporar essas vozes à nossa identidade como nação, em vez de ser país, seremos apenas paisagem, talvez nem isso.
Este texto faz parte da série Brasil que Dá Certo, confira todos textos do especial aqui!
CAROLA SAAVEDRA é escritora e pesquisadora nascida em Santiago (Chile); é autora, entre outros, dos ensaios de "O mundo desdobrável" (Relicário) e dos romances "Com armas sonolentas" (Companhia das Letras) e "O manto da noite" (Companhia das Letras)
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