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'Feijoada em troca de livros': uma biblioteca agita Campina Grande

Nana Grunevald/UOL
Imagem: Nana Grunevald/UOL

Bruno Ribeiro

Nasceu em Pouso Alegre (MG) e é autor de "Porco de Raça" (Darkside Books)

01/11/2022 06h00

"Olha o chamamento do livro!", gritou a cozinheira Maria do Socorro Lima Cabral pelo bairro do Tambor. O seu filho, Williams Cabral, estapeava o surdo - um instrumento musical - e puxava o cortejo conduzido pelo grupo de percussão Maracagrande. Os batuques e os gritos de dona Maria animaram o pessoal da Rua do Juá 114, rodeada de casas bem ordenadas, pequenos comércios e cortada por uma linha de trem desativada. Neste universo, bairro de mil possibilidades e sonhos, um rastro cultural marcaria o dia 28 de fevereiro de 2010: data em que nasceria a biblioteca do Tambor, na cidade de Campina Grande.

"Dávamos uma porção de feijoada em troca de um livro", disse Williams aos risos. Um sorriso que sabe quando iluminar para encontrar caminhos e se apagar para peitar os obstáculos. Williams Cabral é cria da arte e das políticas públicas de um Brasil possível. Aos quinze anos já fazia teatro e dançava quadrilha, balé popular, coco de roda e ciranda. A arte fez com que ele fugisse daquilo que a sociedade esperava que fosse. Formado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), caiu pra dentro do mundo cultural, da movimentação dos espaços públicos e da produção de eventos, até que em 2010, entre suas pesquisas e antenas ligadas no mundo, teve a ideia de criar uma biblioteca comunitária.

Arrumou um espaço na associação dos moradores do Tambor e decidiu que concretizaria esse sonho. "Simbora sair gritando isso pelas ruas e ver se dá bom." Deu bom. Música boa. Feijoada em troca de livros. O cortejo pelo bairro funcionou, mas o espaço físico da biblioteca precisou mudar, pois no final de 2010, a coordenadora da associação achava que o povo do Tambor não queria ler e que aquilo era perda de tempo.

"Esses livros tão é tomando espaço aqui da associação", ela disse.

Com uma carroça de burro e três viagens de ida e volta, Williams levou todos os livros para a garagem da sua mãe e ali, até hoje, oficializou-se como a biblioteca do Tambor. Com o tempo, a biblioteca precisou expandir as suas atividades: em 2011 começaram as aulas de capoeira com o professor Morcego, da Rua do Fogo. Vieram as oficinas de maracatu, coco de roda, confecção de papel machê, contação de história, teatro, o primeiro evento nas ruas, em 2013, que seguiu com o "Tambor na ativa", "Tambor de Memórias" - onde ocorre um bingo valendo um bode e tem o intuito de instigar nos moradores as memórias e histórias da região -, "Tambor das artes" e o "Tambor no cinema", até a ideia recente de formar uma bateria para o "Estrela da Invasão do Tambor", time de futebol do bairro que já vendeu mais de 150 camisas oficiais.

2 - Bruno Ribeiro/Ecoa - Bruno Ribeiro/Ecoa
Williams Cabral, da biblioteca Tambor
Imagem: Bruno Ribeiro/Ecoa

Os eventos não aconteciam apenas na biblioteca-garagem. O espaço transcendeu, ganhou o redor - a biblioteca vira bairro, os moradores viram histórias. E isso tudo que Williams faz, importante ressaltar, é para puxar o público para o livro. Para ele, "a literatura abrange tudo".

No sábado ensolarado em que cheguei para entrevista-lo, vi toda a sua riqueza. E da biblioteca: pequena, mas enorme em conteúdo. Estava nas estantes prateadas envergadas, quase cedendo por conta da quantidade de livros, caixas e utensílios diversos, uma cadeira de balanço indo e voltando com o sopro do vento, a mesa de madeira no centro desta galáxia, os grafites nas paredes que dão vida a garagem, sempre aberta ao público.

Sentado em um sofá, ao lado dos livros, Williams conta um dos objetivos do projeto: "O Tambor é próximo das indústrias e a galera daqui sempre tem esse destino. Eles terminam o ensino médio e vão pra uma fábrica trabalhar. A biblioteca nasceu também com esse intuito de mostrar outras possibilidades, fugir da tradição do bairro ser morada de operário. Nada contra, mas é preciso diversificar. Principalmente mostrar o caminho da universidade, porque se pá um menor pode mudar de vida seguindo por aí."

E muitos no Tambor desviaram da norma e entraram na universidade. Williams é um exemplo disso. Atualmente está morando em João Pessoa, dando aula de História em um colégio estadual e fazendo mestrado: escreve uma dissertação sobre capoeira chamada "Reeducando sentidos e sensibilidades". Ele cita Franz Fanon e o professor de capoeira Morcego como influências chaves - é entre o gingado da luta e as páginas viradas que faz seu manifesto em vida. Prática e teoria.

O primo dele cola na nossa conversa. O historiador disse que é mais um que o ajuda. Ninguém fica parado e todo mundo bota a mão na massa para o crescimento da biblioteca e as suas diversas atividades: amigos, familiares - os seus dois irmãos, mãe, pai -, a UEPB, editais públicos, entre outros. Ou melhor: Quase todo mundo. Em 2015, Williams solicitou uma caixa de som para a secretaria de cultura de Campina Grande e ao invés de receber o que pediu, ganhou uma caixa de salgados.

"Aí deixei pra lá", disse.

Ainda durante a nossa conversa, uma menina apareceu para doar livros: eles estavam dentro de uma sacola de supermercado. Sorridente, ela falou: "Depois venho deixar mais". O historiador abriu a sacola e folheou as novas aquisições da biblioteca. A menina irradiava uma luz e estava prestes a sair, então Williams Cabral agradeceu e falou em um tom bem humorado, mas sem perder a seriedade: "E volte pra ler depois, viu!".

O bom - contrariando a sentença da antiga coordenadora da associação dos moradores do Tambor - é que eles sempre voltam. E leem.

Este texto faz parte da série Brasil que Dá Certo, confira todos textos do especial aqui!

escritor - Nana Grunevald/UOL - Nana Grunevald/UOL
Imagem: Nana Grunevald/UOL

BRUNO RIBEIRO nasceu em Pouso Alegre (MG) e vive em Campina Grande (PB). É escritor, tradutor e roteirista; autor, entre outros, de "Porco de Raça" (Darkside Books), "Como usar um pesadelo" (Caos & Letras) e "Bartolomeu" (Kindle). Foi laureado com 1º Prêmio Machado DarkSide Books, em 2020, o 1º Prêmio Todavia de Não-ficção, além de ser finalista do Prêmio Jabuti de Romance de Entretenimento 2022.

Sugestões de leitura

'Porco de Raça', Bruno Ribeiro

Livro 'Como Usar um Pesadelo', Bruno Ribeiro

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