Catadoras de sementes conquistam moto, carro e casa em Mato Grosso
Quando recorda seu passado, Milene Alves, 24, conta ter vivido uma "infância de miséria", em que mal havia um bife para cada um comer. A mãe de Milene era empregada doméstica, o pai pescador. Eles enfrentavam dificuldades financeiras e alguns problemas de saúde mental.
Há dez anos, no entanto, uma atividade incomum mudou as perspectivas da família de Milene. De Nova Xavantina (MT), ela, sua mãe, pai, irmão e marido passaram a coletar sementes nativas em áreas verdes da cidade.
Minha saúde melhorou bastante. [Com as coletas] a gente passa muito tempo no mato e fica muito agradecido pelas coisas boas que Deus oferece. Vera Alves, mãe de Milene
Mas catar sementes pode dar dinheiro? Não só pode, como permitiu à família de Milene uma ascensão social grande: "Comprei uma bicicleta, depois uma moto e da moto passei para o carro. E assim minha vida foi mudando. Hoje não trabalho mais de doméstica e minha atividade é só na rede de sementes, não tenho vontade de parar", diz a Ecoa Vera Alves, mãe de Milene. A família também conseguiu construir uma casa com o dinheiro das sementes.
Não é um caso isolado, nem mero esforço pessoal. Através da Rede de Sementes do Xingu, esse trabalho gera renda para mais de 500 coletores como eles na região, além de contribuir para plantar novas florestas em áreas degradadas e recuperar nascentes. A entrada da família Alves para a Rede transformou a realidade em que viviam.
Hoje Milene é uma das principais lideranças jovens da Rede. Foi a primeira da família a ter curso superior e é mestranda em Ecologia e Conservação pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat). "Quis ser bióloga para contribuir com a Rede", diz a Ecoa.
1 por amor, 2 por dinheiro
Tudo começou com um saco de baru. Foi um ex-namorado de Vera, mãe de Milene, quem levou para casa centenas de sementes de baruzeiro, árvore nativa do Cerrado, querendo ajuda para limpá-las. Ele já fazia parte da Rede de Sementes do Xingu e aquilo se tornou rotina. Milene tinha 14 anos.
Logo, ela e a mãe também estavam saindo para coletar e complementar a renda, sem ter ideia da importância que a Rede ganharia em suas vidas. Foram aprendendo a reconhecer as "matrizes", plantas mãe das quais se pode retirar sementes de espécies nativas mesmo na cidade, em praças, beiras de estrada e propriedades rurais.
Conforme Milene crescia, ela compreendia melhor a importância daquele trabalho para o meio ambiente:
Fui começando a entender que não era só coletar semente para ganhar dinheiro, que tinha algo muito maior. Até então, eu nem sabia o que era uma nascente, o que era reflorestamento. Quando vi uma área restaurada, quando conheci os indígenas, entendi a grandeza desse trabalho. Milene Alves
Esse entendimento se fortaleceu com a participação nas oficinas formativas da Rede e nos plantios de muvuca, técnica de restauração adotada pela organização.
Mas foram as conexões com outros membros da organização que mais a encantaram: "As pessoas cuidavam da gente. Tratavam-nos como se fôssemos muito importantes.".
Carinho com a natureza
Em pouco tempo, Milene ganhou destaque na organização: se tornou responsável pela casa de armazenamento de sementes da cidade, assumiu uma posição de liderança nos grupos de coletores, e entrou para o comitê diretivo, do qual faz parte atualmente. Essa atuação também a incentivou a ingressar no ensino superior, se tornar bióloga e pesquisadora.
Ainda na graduação em biologia, ela começou a aplicar seus conhecimentos para ajudar a resolver problemas da rede. Ao saber que os coletores estavam deixando de recolher sementes de algumas espécies em função de sua baixa taxa de germinação (cálculo de quantas irão brotar), Milene se uniu à professora da Unemat Beatriz Marimon para investigar por que isso estava acontecendo.
Logo que conheceu Milene, há seis anos, a professora se encantou com o cuidado que a aluna mostrava em relação à natureza.
"A forma de ela falar a respeito e lidar com a natureza é muito carinhosa. Se eu tivesse que descrever a Milene, a compararia com um beija-flor. A gente vê muito pouco esse carinho nas pessoas hoje em dia", diz Marimon a Ecoa. "Juntas a gente conseguiu desvendar rapidamente o problema: eles estavam coletando precocemente a semente."
Sementes para salvar o clima
Ao longo dos anos, Milene foi notando as alterações no clima através da rotina das coletas. Nova Xavantina sempre foi uma cidade de clima quente. Mas, uma década atrás, ela e a família aguentavam passar o dia todo catando sementes.
Saíam cedo, levando uma marmita de farofa. Na hora do almoço, paravam debaixo de uma árvore para comer e então continuavam, só voltavam às seis da tarde. Hoje, o calor é tanto que a mãe de Milene, Vera, é obrigada a parar antes do meio dia para não passar mal.
O que mais a impressionou foi a transformação das áreas alagadas onde coletavam sementes dos muricizais. Antes, a água batia na cintura ou nos joelhos. Hoje secou.
Essas mudanças foram acendendo um alerta para Milene. O aquecimento do planeta prejudica a qualidade das sementes, o que causa problemas no ciclo de vida da planta que vai germinar.
"Eu converso com coletores indígenas, de assentamentos e também da cidade, e todos eles dizem a mesma coisa: o clima está mudando e a qualidade das sementes está diminuindo", diz.
Ela decidiu então estudar no mestrado o impacto da emergência climática em sementes nativas da Amazônia e do Cerrado. Sua pesquisa submeteu as dez espécies de sementes mais comercializadas pela Rede de Sementes do Xingu a temperaturas que variam entre 35º e 60º C, verificando quais são mais resistentes e quais não suportam as temperaturas elevadas.
A descoberta de quais sementes resistem melhor a temperaturas mais altas deve contribuir para manter a eficiência dos plantios de restauração, que contribuem para reduzir as mudanças climáticas sequestrando carbono e preservam o sistema hidrológico do Xingu.
"Ela vai poder indicar qual semente é preferível plantar para a recuperação de áreas degradadas a médio ou até curto prazo das mudanças climáticas", afirma a professora Beatriz Marimon, orientadora de Milene no mestrado. "A importância da pesquisa dela é enorme".
Durante o período do mestrado, Milene também teve uma filha: Ana Julia. A maternidade é mais um fator que impulsiona sua atuação pelo planeta:
"Depois que ela nasceu, ficou ainda mais forte a responsabilidade de continuar. Talvez eu não colha os frutos da árvore que eu planto hoje, mas minha filha vai colher.".
*A repórter viajou a convite da Rede de Sementes do Xingu e do Instituto Socioambiental
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