Em 'Paloma', mulher trans escreve carta ao Papa para poder casar na Igreja
Em novembro de 2009, um acontecimento chacoalhou a pequena Saloá, no agreste pernambucano. Paloma, uma mulher trans, e José Ricardo, um homem cis, se casaram na cidade vizinha, Caetés.
Segundo reportagens da época, o pedido veio do noivo e foi a realização de um sonho de Paloma. Os registros descrevem um casamento completo: teve cerimônia religiosa, troca de alianças e brinde, vestido branco para a noiva e traje de gala para o noivo. A festa contou com cerca de 450 convidados e foi animada pela banda Espora de Prata.
Mas nem todo mundo em Saloá estava preparado para compartilhar a felicidade do casal. O casamento incomodou parte da população da cidade e o padre ameaçou anular a cerimônia, afirmando ter sido "enganado".
Esse episódio inspirou "Paloma", novo filme do diretor pernambucano Marcelo Gomes, estrelado por Kika Sena e vencedor do Festival do Rio em outubro, onde levou os prêmios de melhor longa de ficção, melhor atriz e o Felix, voltado a obras com temática LGBTQIA+. O longa entra em cartaz dia 10 de novembro.
"Me emocionei muito com essa história, porque ela trazia elementos contraditórios e inerentes à sociedade brasileira. Falava de amor, mas falava de ódio. Falava de preconceito, mas também de fé", disse o cineasta de "Cinemas, Aspirinas e Urubus" a Ecoa.
O filme é a estreia de Sena nas telas: poeta, performer e arte-educadora, a alagoana atuava no teatro. Com o papel, se tornou a primeira travesti premiada no Festival do Rio. "Vejo Paloma como uma mulher determinada, disposta a enfrentar todas as barreiras para realizar seu sonho e eu me identifico com isso. Ela também é a realização de um sonho para mim", afirmou.
Palomas do Nordeste
Desde que leu a notícia sobre o casamento de Paloma, há mais de uma década, Gomes passou a querer filmar a história de uma personagem trans. No país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, com um assassinato a cada 29 horas, sua intenção era falar de amor e inserir a personagem em uma rede de afetos.
Além da inspiração na história da Paloma real, a personagem e o roteiro foram construídos com base na experiência de outras mulheres trans que o cineasta conheceu durante as filmagens de "Estou Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar", seu filme anterior, por volta de 2017. O encontro com Paloma só aconteceu quando o roteiro já estava pronto.
Para a atriz Kika Sena, foi sua mãe a principal fonte de inspiração na construção da personagem. "Minha mãe corre atrás do que ela quer e não está nem aí para que as pessoas vão falar dela. Ela tem uma relação intensa com a fé. Acho que assim como Paloma, a fé maior dela é nela mesma, por isso o que o outro diz não importa tanto. E o fato de ser analfabeta também, a simplicidade com que ela lida com o mundo, com as pessoas", disse.
Sena nasceu em Maceió, mas cresceu em Marechal Deodoro (AL), cidade com cerca de 50 mil habitantes e, mesmo sendo no litoral, "aspecto interiorano", segundo ela. Ela sonhava em ser atriz desde criança, e saiu da cidade para ir para Brasília, onde se formou em Artes Cênicas. Atualmente é mestranda em teoria e prática das artes cênicas pela Universidade Federal do Acre.
"O sonho de não caber dentro daquele lugar que foi destinado para mim me aproxima muito de Paloma"
Kika Sena, atriz
Agora que as portas do cinema se abriram, ela também pretende se profissionalizar nas áreas de roteiro e direção."Quero ocupar esse espaço também do lado de fora das câmeras para poder contar as histórias a partir do meu ponto de vista", disse.
A alagoana diz ser grata a diretores e roteiristas cisgênero que tem buscado humanizar pessoas trans nas histórias que contam, mas vê o relativo aumento dos papéis para atrizes trans e as premiações para o filme como resultado da luta de pessoas trans e travestis por representatividade.
"São frutos da nossa luta enquanto comunidade que cansou de se ver representada por uma pessoa cisgênera que estereotipa nossas histórias e nosso modo de ver o mundo", disse.
'Um ato político do jeito dela'
Paloma trabalha no campo colhendo mamão e também como cabeleireira. Vive com seu marido, o pedreiro Zé, e com a filha pequena, Jennifer. Sua vida tem "pilares de afeto", como define o diretor Marcelo Gomes: a família, as amigas de trabalho e as amigas do "bar das primas".
Mesmo focando nas relações afetivas, o filme não deixa de mostrar as violências presentes no cotidiano de Paloma. Olhares e comentários num dia de lazer, ameaças do chefe, até que um episódio mais grave acontece a uma de suas amigas. Mesmo triste, ela mantém seu projeto: "Agora é que vou casar mesmo", diz a personagem no filme.
Religiosa, ela chega a escrever uma carta ao papa - ditada a uma amiga, já que Paloma não escreve - pedindo autorização para casar. Ela não esmorece quando recebe uma resposta negativa, afirmando também ser "obra de Deus".
"Aquilo é uma revolução, um ato político do jeito dela", avaliou o diretor.
Foi a singularidade da história da travesti que queria casar e constituir uma família tradicional que tocou Gomes, mas ele aposta no que a personagem tem de comum para cativar qualquer pessoa que assista.
Segundo ele, muitos dos espectadores com quem teve contato discordam do sonho de Paloma, mas têm empatia pela personagem. "Ela tinha um desejo de conto de fadas. Mais importante do que fazer uma análise crítica desse desejo é dizer que ela tem o direito de sonhar, de ter essa fantasia", complementou.
A atriz do filme, Kika, também diz ter passado por esse processo: "Teve um momento em que eu não me identificava tanto, questionei as escolhas [da personagem], a abandonei em prol do que eu imaginava que ela teria que ser. Depois comecei a acolhê-la, a entendê-la, a legitimar seus sonhos e escolhas. Eu comecei a me ver nela e senti-la mais próxima de mim".
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