'Floresta de ponta-cabeça' encontrada no Brasil corre risco de pegar fogo
Uma floresta de ponta-cabeça. Parece a descrição de um filme de fantasia, mas é real. A "floresta ao contrário" fica no Brasil, mais precisamente no Cerrado. Está a muitos metros de profundidade, mas perto dos perigos da superfície.
Ao longo do ano, Rafael Drummond fica em alerta para combater os incêndios descontrolados contra o Cerrado na cidade de Cavalcante, Goiás, que podem atingir a floresta reversa.
O trabalho voluntário exige conhecimento do território e do fogo. Também é preciso longas caminhadas, feitas com equipamentos contra o fogo que pesam 10 quilos. Há risco de queda, lesões e queimaduras, mesmo com macacão antichamas. "São momentos de muita intensidade", diz. A temperatura pode ultrapassar os 200ºC.
O termo "floresta invertida" — que exige esforços de dezenas de brigadistas - foi criado por especialistas para explicar como funciona o bioma. Quem o desconhece, pode imaginá-lo com menos natureza do que a Mata Atlântica e a Amazônia. Mas não é verdade.
Apesar de possuir árvores, a maior parte do Cerrado é formada por capim. São mais de 700 espécies com raízes que podem ultrapassar seis metros de profundidade. A característica permitiu a formação do bioma há milhares de anos e a sobrevivência até hoje.
O fogo é comum no Cerrado, diferentemente da umidade natural que protege a Amazônia e o Pantanal em áreas sem desmatamento. No Cerrado, raios causam incêndios com chamas que se deslocam rapidamente e que, com a chuva, são dissipadas. Diferentemente dos incêndios causados de forma criminosa.
O ciclo natural permitiu a criação do Cerrado há mais de 10 milhões de anos. A vegetação, selecionada naturalmente por estas características, forma a "floresta invertida". Ou seja, um capim que se "esconde" das chamas e, assim, sobrevive e mantém no subsolo uma rica e protegida vida orgânica.
Eis o problema do fogo
Apesar de o fogo ser parte do Cerrado, as mudanças climáticas e os incêndios descontrolados estimulam o fogo indiscriminado. As chamas causam impacto na vegetação, entre os animais e famílias.
Segundo o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe), 62 mil focos de incêndio foram detectados no Cerrado em 2021. Neste ano, já são mais de 30 mil focos. Ainda há um desafio em particular.
É mais difícil plantar de ponta-cabeça
A 'floresta invertida' é mais difícil de ser reflorestada. Segundo Alessandra Fidelis, doutora em ecologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e especialista em queima experimental no país, muitas iniciativas de reflorestamento desconhecem a natureza específica do Cerrado.
Na prática, o Cerrado é uma savana, como na África. Mas hoje não tem grandes animais como os elefantes e as girafas africanas.
Na última década, apresentações na ONU defendem o plantio de 1 trilhão de árvores, uma meta incapaz de ajudar na manutenção do Cerrado. Em agosto, um artigo do New York Times destacou o descompasso entre as metas globais em relação à savana brasileira. Entre os esforços, houve até o lançamento de sementes de aeronaves na tentativa de reflorestá-la.
"Se você plantar árvores mais altas, o capim que precisa e gosta de luz solar vai ficar na sombra", diz. Para a especialista, o plantio de árvores diminuiu até 90% da biodiversidade na savana africana.
As árvores mais altas, plantadas sem estratégia, também alteram o trabalho das formigas. Os insetos levam material orgânico para lá e para cá e torna a floresta invertida ainda mais saudável. "As formigas são as grandes engenheiras do Cerrado", diz.
Os brigadistas
Como salvar, então, a floresta invertida do Cerrado?
Os brigadistas, como Rafael, estão organizados de maneira voluntária ou são convocados pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade para) para impedir o fogo descontrolado em todo o país. Mas, além do combate, também criam uma rede de prevenção. É possível ajudá-los por meio de iniciativas como a Defensores do Cerrado.
Desde o fim dos anos 1990, a queima controlada é permitida para agricultores e agropecuaristas. Para isso, brigadistas treinam, analisam o terreno, estimam a temporada de chuvas e indicam a época apropriada para a queima. Além disso, criam aceiros, corredores que criam obstáculos que impedem o avanço do fogo em regiões que não deveriam pegar fogo.
São estratégias para manter a relação saudável do Cerrado e sua floresta invertida com o velho amigo: o fogo. É uma tarefa complexa: o bioma está em 23% do território nacional.
"Temos 12 mil espécies de plantas no Cerrado, e boa parte desta vida estão em plantas pequenas, como o capim", diz Fidelis. "Essa vegetação forma um sistema subterrâneo gigantesco e interligado", conclui.
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