Ar puro que pode valer R$ 3 milhões: entenda o mercado de carbono indígena
Os povos originários do Brasil têm relação direta na preservação da Amazônia e no enfrentamento da crise climática. Dados divulgados pelo MapBiomas ajudam a mensurar a importância da presença indígena nessas áreas: nos últimos 30 anos, por exemplo, somente 1% das terras indígenas teve perda de vegetação nativa provocada pelo desmatamento. Já nas áreas privadas a perda foi de 20,6%.
Além do potencial de conservação, a expectativa é de que a relação entre os indígenas e a floresta também possa levantar recursos para as próprias comunidades a partir da geração de créditos de carbono. Crédito de carbono é uma expressão que corresponde a unidades representativas de 1 tonelada de carbono que deixou de ser lançada para a atmosfera. Quem deixa de lançar carbono "vende" seus créditos para quem polui mais o mundo, buscando um equilíbrio justo entre as emissões.
Segundo um estudo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária no Acre (Embrapa) envolvendo a terra indígena Puyanawa, na Bacia do Rio Juruá, no município de Mâncio Lima (AC), a emissão de créditos de carbono poderia gerar US$ 38,2 mil de ganho por ano (cerca de R$ 198 mil na cotação atual do dólar). A estimativa considera a projeção do desmatamento evitado na região de 24,4 mil hectares, de 2006 a 2025.
Conforme a pesquisa, nessas quase duas décadas, 6.381 toneladas de carbono teriam a emissão evitada anualmente. No período total analisado, a remuneração poderia ultrapassar os R$ 3 milhões, dependendo do câmbio do dólar e dos valores por tonelada negociados com o investidor interessado em compensar as suas emissões de CO2.
Esse é apenas um dos exemplos do potencial dessas terras por meio da preservação ambiental, explica o autor da pesquisa e chefe-geral da Embrapa Acre, Eufran Amaral. A Embrapa vem acompanhando o povo Puyanawa há pelo menos uma década, sendo que nos últimos três anos passou a fazer mensurações do potencial de geração de recursos, a fim de preparar as bases para um projeto maior.
"No Acre, 90% das terras indígenas já têm seu plano de gestão territorial, que estabelece o que eles querem fazer no território. Hoje, as áreas mais conservadas que temos são em terras indígenas. Eles têm uma estratégia de uso muito eficiente que garante a cobertura florestal e, consequentemente, a manutenção de serviços ambientais", observa.
No caso dos Puyanawa, somente 5,8% do território passaram por alterações, isto é, ganharam pastagens, roçados, quintais agroflorestais, casas e escolas, entre outras estruturas. Há pelo menos 10 anos, destaca Amaral, os indígenas da região, que são produtores de mandioca, matéria-prima para a produção de farinha, têm optado por atuar em áreas já alteradas, priorizando projetos integrados que evitam novos desmatamentos e ajudam a recompor áreas degradadas.
"Isso envolve também a relação com a cultura. Por exemplo, apoiar mulheres no artesanato com trabalho de sementes em vez de miçangas que contenham plástico. É um olhar mais diferenciado sobre outros projetos da comunidade", comenta o chefe da Embrapa Acre.
Além do crédito de carbono
Amaral argumenta, no entanto, que a geração de recursos nessas terras deve ir além do crédito de carbono, uma vez que a floresta não se resume a isso. "A floresta tem água, biodiversidade, beleza cênica, regulação climática e principalmente conhecimento tradicional. Quanto vale a cura de uma doença usando a medicina da floresta?", questiona.
Segundo ele, a expectativa é de que as terras indígenas possam ser remuneradas pela prestação de serviços ambientais, o que incluiria atividades além do reflorestamento, como a conservação da biodiversidade, o cuidado com a água e a própria guarda dessas regiões — ações que, na prática, já são realizadas por indígenas de diversas comunidades.
No Acre, essa geração de recursos está prevista no Sistema Estadual de Incentivo aos Serviços Ambientais (SISA), criado em 2010. De acordo com Amaral, no caso do estudo com os Puyanawa, o cálculo considerando recursos envolvendo a emissão de créditos de carbono foi apresentado porque, no momento, esse é o único indicador financeiro possível de ser utilizado.
Distribuição de recursos
A partilha da remuneração obtida com a emissão de créditos de carbono e outras atividades em terras de povos nativos deve ser direcionada para associações indígenas de cada comunidade. São essas instituições que receberiam os recursos e os investiriam em ações priorizadas pela comunidade, fortalecendo a cultura local, garantindo a defesa de territórios, a melhoria do atendimento de saúde e a soberania alimentar, por exemplo.
Luís Puwe, professor e liderança do povo Puyanawa, lembra que o trabalho de preservação das terras já faz parte do dia a dia da população indígena, estimada em mais de 500 pessoas. Com isso, a perspectiva de receber pela prestação de serviços ambientais, como a geração de créditos de carbono, é positiva. "O recurso ajudaria na nossa sobrevivência, no desenvolvimento de trabalhos sociais e na continuidade da própria floresta, através de pesquisas", observa Puwe.
Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Rodrigo Gomes Lobo acompanhou as discussões sobre mercado de carbono junto ao povo Tembé, no Pará, de 2011 a 2016. Ele reforça que, embora as terras indígenas sejam pertencentes à União, os povos nativos têm direito de usufruto sobre essas áreas. Por isso, não há irregularidade para essa remuneração. Todos os contratos firmados sobre a prestação de serviços ambientais, sejam eles para geração de crédito de carbono ou não, devem ter o consentimento da comunidade. A Fundação Nacional do Índio (Funai) também deve acompanhar as negociações.
Segundo Lobo, esse processo precisa ser amplamente discutido junto à comunidade a fim de que os indígenas se sintam seguros do ponto de vista jurídico. "Eles têm medo de que isso seja usado no futuro para tirar direitos territoriais deles", pondera, ao comentar que em 2012 era comum na Amazônia o termo "caubóis do carbono", uma referência a empresas que tentavam firmar contratos fraudulentos com os indígenas. "Os Tembé e os Suruí [de Rondônia] estavam dentro da lei, com acompanhamento da Funai e Ministério Público", diz.
No caso dos Tembé, a negociação não avançou, enquanto os Suruí conseguiram fazer a primeira venda de carbono certificado em terras indígenas no país, em 2013. Na época, eles chegaram a criar um fundo de carbono para administrar os recursos.
Separar o joio do trigo
Amaral assinala que a partilha deve ser justa e equitativa, com os créditos sendo de domínio das comunidades. "A grande questão é como separar o joio do trigo e evitar parceiros mercantilistas. É por isso que o projeto (do povo Puyanawa) não avançou ainda. Precisamos encontrar um parceiro que tenha, de fato, interesse social nessas terras. Hoje, o investidor quer ficar com 50% dos créditos", relata o chefe da Embrapa Acre.
Questionada sobre a venda de crédito de carbono em terras indígenas, a Funai disse que ainda não existe instrução normativa sobre o assunto, mas que reconhece a organização social, costumes e tradições das comunidades indígenas e a responsabilidade desses grupos por suas ações. A fundação, contudo, não informou a quantidade de projetos em negociação, ou mesmo ativos, para viabilizar a remuneração das comunidades pela emissão de créditos de carbono nessas terras pelo país.
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