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'A música brasileira é uma música negra'

Margareth Menezes e Malía no Festival Afropunk realizado ano passado - Caio Lírio/Divulgação
Margareth Menezes e Malía no Festival Afropunk realizado ano passado Imagem: Caio Lírio/Divulgação

Donminique Santos

20/11/2022 06h00

Março de 2020. Bahia e Nigéria, mais uma vez, conectadas para celebrar as raízes afro. Naquela ocasião, a banda baiana IFÁ abria o Nublu Festival, em São Paulo, evento que contava com a presença de Femi Kuti, filho do astro nigeriano Fela Kuti, maior nome do afrobeat na história. Um encontro histórico para o grupo baiano que, desde o nome, IFÁ, reverencia o oráculo africano.

O IFÁ, assim como o mundo inteiro, não sabia ao certo o que estava acontecendo naquele momento no planeta Terra. Era o início da pandemia de coronavírus, declarada, pela Organização Mundial da Saúde, três dias antes do primeiro show da banda na capital paulista. "Nós voltamos para Salvador e não saímos de casa por um ano", lembra Fabrício Mota, músico do IFÁ.

Para manter o propósito de ratificar a importância da música como elo histórico entre as culturas negras da diáspora, seria necessário não perder de vista o movimento de Sankofa. Até porque, não é errado voltar ao passado para buscar o que se perdeu. Ensinamento que serve a esta reportagem que começou pouco antes do início da pandemia. Nada melhor que o 20 de Novembro para abrir caminhos para este resgate.

Fundamento, antes de tudo

Em 2019, conversamos com o maestro Letieres Leite, um sensível defensor e difusor da cultura de matriz africana na música. Criador da Orkestra Rumpilezz, Letieres faleceu, aos 61 anos, em outubro do ano passado, vítima da covid-19. Era comum ouvir o multi-instrumentista resgatar que a música popular no Brasil, quase na sua totalidade, é fundamentada na contribuição das matrizes africanas. "Então, seria quase uma redundância a gente falar de uma música negra. A própria música brasileira é uma música negra", dizia Letieres.

Neste sentido, Lazzo Matumbi salienta a importância da musicalidade dos terreiros e o movimento iniciado pelos Blocos Afro. "Desde o surgimento dos Blocos Afros em 1970, a musicalidade negra da Bahia vem exatamente dos batuques, da extração do ritmo dos terreiros de Candomblé trazido para as ruas em forma de samba", demarca Lazzo, que já foi cantor do importante bloco Ilê Aiyê.

Para cada canto, uma conta

O trabalho do compositor, cantor e doutor em letras, Tiganá Santana ilustra por que a diversidade é o principal composto da musicalidade de uma Bahia negra. "Procuro construir uma obra baseada na diversidade da, ainda mais complexa, experiência de viver, nas suas poéticas.", diz Santana. "Os referenciais negros estão nessa construção, bem como outros referenciais, tudo o que vivi e o que ainda não vivi. Inventar é esse inigualável espaço de liberdade".

Luedji Luna reconhece que são muitas as conexões no universo da música negra, sendo impossível colocá-las em caixinhas. "O rótulo serve mais ao outro, ao público e aos críticos do que ao próprio artista. A gente faz música. Meu processo não é pensado para se enquadrar em uma categoria", declara Luedji, que também considera importante disputar narrativas para construir outros referenciais. "Quando me colocam na MPB, eu disputo este lugar porque o que se espera de uma cantora de MPB é que ela seja branca", pontua.

Letieres Leite resgatava que um dos movimentos musicais onde mais os negros foram protagonistas foi no pagode baiano. "As bandas passaram a ser praticamente negras. São 100% de jovens da periferia, tocando todos os instrumentos".

Música negra, dinheiro branco

2 - José de Holanda/Divulgação - José de Holanda/Divulgação
Tiganá Santana foi o primeiro brasileiro a compor em línguas africanas.
Imagem: José de Holanda/Divulgação

Embora seja evidente o papel imprescindível da cultura negra para música brasileira, artistas negros encontram inúmeras dificuldades para ascender financeiramente. "Quando você faz uma leitura, você observa que todos os grandes ícones, principalmente daqui da Bahia, tem sempre alguém por trás gerenciando, dirigindo e ganhando, às vezes, muito mais. Um exemplo disso é o próprio Carnaval", assevera Lazzo Matumbi.

Margareth Menezes lembra dos obstáculos vividos. "Tinha muita dificuldade para encontrar patrocinador, para você ser visto, para ter oportunidades nos momentos importantes, principalmente porque essa música contemporânea da Bahia tem a raiz afro, mas as representações na parte comercial era feita uma seleção para as pessoas brancas? Até para sair nos blocos", recorda Maga.

"Em que pese experienciar esse espaço de liberdade, sou um artista negro, e, na perspectiva dos alicerces sociais racistas, talvez, esteja reservado a mim e a outros artistas negros e negras um tipo, um limite de feito criativo com um perfil unívoco, simplório. Há um longo caminho à frente", diz Tiganá.

Afropunk

Frente a um cenário permeado pelo racismo estrutural, é fundamental a promoção de espaços para fortalecimento da comunidade negra na cena cultural global. O Afropunk, maior festival de cultura negra do mundo, por exemplo, escolheu Salvador para sediar sua primeira edição no Brasil.

"O festival é muito representativo, pois tem conexão com a cena musical emergente de vários países, dando visibilidade a essa cena global contemporânea da música afro. Isso tem um impacto muito grande no turismo, na realidade econômica dos grupos locais e na economia de um modo geral", considera o cofundador da Afar Ventures, responsável pela atração do Afropunk para Salvador, Paulo Rogério Nunes.

Com direito a "black carpet", a primeira edição completa na América do Sul será realizada nos dias 26 e 27 deste mês, em Salvador. O diretor criativo do Festival Afropunk Ismael Fagundes explicou que a iniciativa busca fortalecer o trabalho de artistas que já estão consolidados e daqueles que estão começando a despontar. A expectativa é receber 20 mil pessoas por dia. Sem dúvida, um momento histórico de reafirmação da consciência negra.