'Sonho com gente morta é ruim': como professora 'capturou' 100 sonhos
A antropóloga Hanna Limulja, 40, começou a sonhar mais após trabalhar entre os ianomâmis, em 2010. Assim que relatava os sonhos, os indígenas do povo Pya ú sempre tinham uma interpretação. Em Tootopi, entre Roraima e Venezuela, a vida acordada e a sonhada têm a mesma importância. Os maus presságios sonhados são alertas e os bons servem com aprendizados. O sonho, enfim, os conecta com a natureza ao redor e os torna melhores.
O objetivo da pesquisadora é demonstrar como o sonho, e o sono, são importantes para criar uma sociedade melhor e coletiva. A experiência é narrada no livro "O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami" (Editora Ubu, 2022), em que a rotina de trabalho soa poética.
Catadora de Sonhos
Todo dia, Hanna coletava sonhos dos indígenas na casa coletiva, um espaço onde famílias são abrigadas. Ali, são feitos discursos sobre tarefas do dia a dia, como a necessidade de caça ou precaução contra ameaças. O momento é chamado de hareamu, e os sonhos podem ser usados como argumentos.
O sonho com animais, como onças e cobras, emite um alerta para manter-se atento e próximo à segurança da aldeia. O sonho com um parente adornado, por exemplo, indica que ele corre perigo de vida. Há os sonhos premonitórios e também os práticos (onde pescam e caçam) que os ajudam a organizar a vida cotidiana. (Os animais também sonham, acreditam os ianomâmis). Em duas semanas, a pesquisadora havia coletado 100 sonhos dos ianomâmis
Os ianomâmis costumam ter dois ou três sonhos em uma noite e, quando os narram em voz alta, tendem a não esquecê-los. Aqueles capazes de narrar muitos sonhos também são vistos como mais sábios.
Segundo a antropóloga, não há distinção clara entre um sonho e um pesadelo. O sonho ruim também não é uma condenação: o futuro incerto ou perigoso pode ser evitado quando sonhado.
Há um tipo de sonho preocupante: aquele com os parentes mortos. "Os sonhos com os mortos não podem ser recorrentes, pois, despertando o sentimento de nostalgia nos vivos, eles o conduziram a um caminho sem volta. E, se há algo que os mortos ensinam bem, é que a saudade é coisa que mata", escreve Hanna.
Os sonhos xamânicos
Os xamãs dominam camadas mais profundas dos sonhos e são os únicos a visitar outros mundos acessíveis somente pelo sonho ou com o yãkõana, uma substância psicoativa do xamanismo ianomâmi.
Ao visitar o mundo dos mortos, ou dos animais, os xamãs conseguem "voltar de forma segura", diz a antropóloga. Os deuses, por exemplo, são conhecidos e vivenciados pelos xamãs por meio dos sonhos e os ajudam a entender o funcionamento de toda a vida no planeta.
A experiência não é linear. Ou seja, tudo que pode acontecer, já aconteceu. Os xamãs, então, trafegam pelos mundos para saber como curar doenças, manter a fertilidade da terra, a paz e uma vida sem doenças e perigos.
A jornada do povo ianomâmi é cada vez mais desafiadora: em três décadas de Território Indígena Yanomami, as ameaças do garimpo ilegal e das invasões se intensificaram na vida acordada.
Para Hanna, o sonho dos ianomâmis almeja uma vida mais digna a todos e pode nos servir como inspiração, especialmente em uma sociedade com dificuldades cada vez maiores para dormir e vislumbrar um futuro melhor.
"O sonho é uma das coisas mais democráticas que existem", diz. "Mas 33 milhões de pessoas com fome não dormem bem. É preciso ter condições, uma vida digna, ter o que comer e saúde para permitir sonhar".
"Apresento os sonhos ianomâmi às pessoas que nunca sonharam a floresta e que talvez nunca tenham ouvido falar dos ianomâmis. Para que conheçam um pouco de sua história, de suas vidas, de seus pensamentos, e para que possam, por sua vez, sonhar com outro modo. [Um modo] diferente do nosso, que por isso mesmo, tem muito a nos ensinar."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.