Topo

Pessoas

'Sonho com gente morta é ruim': como professora 'capturou' 100 sonhos

Xamãs Noë e Davi Kopenawa com o pintor Glauco Pinto de Moraes, então doente, durante a primiera assembléia Ianomâmi - Claudia Andujar/Galeria Vermelho
Xamãs Noë e Davi Kopenawa com o pintor Glauco Pinto de Moraes, então doente, durante a primiera assembléia Ianomâmi Imagem: Claudia Andujar/Galeria Vermelho

De Ecoa, em São Paulo (SP)

21/11/2022 06h00

A antropóloga Hanna Limulja, 40, começou a sonhar mais após trabalhar entre os ianomâmis, em 2010. Assim que relatava os sonhos, os indígenas do povo Pya ú sempre tinham uma interpretação. Em Tootopi, entre Roraima e Venezuela, a vida acordada e a sonhada têm a mesma importância. Os maus presságios sonhados são alertas e os bons servem com aprendizados. O sonho, enfim, os conecta com a natureza ao redor e os torna melhores.

O objetivo da pesquisadora é demonstrar como o sonho, e o sono, são importantes para criar uma sociedade melhor e coletiva. A experiência é narrada no livro "O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami" (Editora Ubu, 2022), em que a rotina de trabalho soa poética.

Catadora de Sonhos

1 - Divulgação - Divulgação
A antropóloga Hanna Limulja, que começou pesquisa de sonhos a partir de trabalho como educadora entre os Yanomami
Imagem: Divulgação

Todo dia, Hanna coletava sonhos dos indígenas na casa coletiva, um espaço onde famílias são abrigadas. Ali, são feitos discursos sobre tarefas do dia a dia, como a necessidade de caça ou precaução contra ameaças. O momento é chamado de hareamu, e os sonhos podem ser usados como argumentos.

O sonho com animais, como onças e cobras, emite um alerta para manter-se atento e próximo à segurança da aldeia. O sonho com um parente adornado, por exemplo, indica que ele corre perigo de vida. Há os sonhos premonitórios e também os práticos (onde pescam e caçam) que os ajudam a organizar a vida cotidiana. (Os animais também sonham, acreditam os ianomâmis). Em duas semanas, a pesquisadora havia coletado 100 sonhos dos ianomâmis

Os ianomâmis costumam ter dois ou três sonhos em uma noite e, quando os narram em voz alta, tendem a não esquecê-los. Aqueles capazes de narrar muitos sonhos também são vistos como mais sábios.

Segundo a antropóloga, não há distinção clara entre um sonho e um pesadelo. O sonho ruim também não é uma condenação: o futuro incerto ou perigoso pode ser evitado quando sonhado.

Há um tipo de sonho preocupante: aquele com os parentes mortos. "Os sonhos com os mortos não podem ser recorrentes, pois, despertando o sentimento de nostalgia nos vivos, eles o conduziram a um caminho sem volta. E, se há algo que os mortos ensinam bem, é que a saudade é coisa que mata", escreve Hanna.

Os sonhos xamânicos

Os xamãs dominam camadas mais profundas dos sonhos e são os únicos a visitar outros mundos acessíveis somente pelo sonho ou com o yãkõana, uma substância psicoativa do xamanismo ianomâmi.

Ao visitar o mundo dos mortos, ou dos animais, os xamãs conseguem "voltar de forma segura", diz a antropóloga. Os deuses, por exemplo, são conhecidos e vivenciados pelos xamãs por meio dos sonhos e os ajudam a entender o funcionamento de toda a vida no planeta.

"O desejo dos outros", obra publicada pela editora Ubu (2022) - Divulgação - Divulgação
"O desejo dos outros", obra publicada pela editora Ubu (2022)
Imagem: Divulgação

A experiência não é linear. Ou seja, tudo que pode acontecer, já aconteceu. Os xamãs, então, trafegam pelos mundos para saber como curar doenças, manter a fertilidade da terra, a paz e uma vida sem doenças e perigos.

A jornada do povo ianomâmi é cada vez mais desafiadora: em três décadas de Território Indígena Yanomami, as ameaças do garimpo ilegal e das invasões se intensificaram na vida acordada.

Para Hanna, o sonho dos ianomâmis almeja uma vida mais digna a todos e pode nos servir como inspiração, especialmente em uma sociedade com dificuldades cada vez maiores para dormir e vislumbrar um futuro melhor.

"O sonho é uma das coisas mais democráticas que existem", diz. "Mas 33 milhões de pessoas com fome não dormem bem. É preciso ter condições, uma vida digna, ter o que comer e saúde para permitir sonhar".

Os Yanomami e Ye'kuana no encontro de Lideranças Yanomami e Ye'kuana - Victor Moriyama / ISA/Victor Moriyama / ISA - Victor Moriyama / ISA/Victor Moriyama / ISA
Os Yanomami e Ye'kuana no encontro de Lideranças Yanomami e Ye'kuana
Imagem: Victor Moriyama / ISA/Victor Moriyama / ISA

"Apresento os sonhos ianomâmi às pessoas que nunca sonharam a floresta e que talvez nunca tenham ouvido falar dos ianomâmis. Para que conheçam um pouco de sua história, de suas vidas, de seus pensamentos, e para que possam, por sua vez, sonhar com outro modo. [Um modo] diferente do nosso, que por isso mesmo, tem muito a nos ensinar."

Pessoas