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Sócrates, o jogador que criou uma democracia própria em meio à ditadura

Sócrates comemorando gol pelo Corinthians - Rodolpho Machado
Sócrates comemorando gol pelo Corinthians Imagem: Rodolpho Machado

Carolina Juliano

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

24/11/2022 06h00

No dia em que o Brasil estreia no país sede mais controverso da Copa do Mundo, Ecoa lembra o legado de um jogador extraordinário, que certamente não entraria em campo calado ou sem uma faixa de protesto na testa. Um jogador que em plena ditadura militar criou uma democracia própria, subiu em palanques, lutou por direitos civis, empunhou bandeiras e faixas e fez dos gramados também um palco para o seu ativismo.

Quem se maravilhava com os geniais passes de calcanhar de Sócrates dentro de campo já entendia que aquele era um jogador ímpar também fora das quatro linhas. Com um nome que carregava a intelectualidade do filósofo grego e a devoção por seu país, Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira ficou marcado na história como o jogador de futebol mais politizado do Brasil.

O meio-campista, que também se formou médico pela Universidade de São Paulo (USP), começou a jogar no Botafogo de Ribeirão Preto, mas foi no Corinthians que ele ganhou notoriedade, em pleno período de Ditadura Militar (1964 a 1985). Pelo futebol que jogava e também pelas suas ações fora de campo.

Em meio ao regime em que o povo não podia participar nem se manifestar, fundou dentro do Corinthians, com Wladimir e Casagrande, uma democracia paralela, na qual todos - dos roupeiros e motoristas aos dirigentes e presidente - tomavam, juntos, as decisões do clube, de forma coletiva e democrática.

O jogador também participou ativamente da campanha 'Diretas já', que exigia a volta das eleições diretas no país, direito civil cassado pela ditadura. Discursou em comícios, comemorou gols com o punho fechado e erguido em alusão à luta dos trabalhadores e estampou frases políticas em seus uniformes. Saiba um pouco mais sobre a sua vida:

Sócrates: De migrante a doutor

Sócrates - Reprodução - Reprodução
Sócrates jogando pelo Botafogo de Ribeirão Preto
Imagem: Reprodução

Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira nasceu em Belém do Pará, em 19 de fevereiro de 1954. Seu pai, que era cearense e funcionário público federal, foi transferido para Ribeirão Preto quando ele era ainda pequeno e migrou do Norte para o Sudeste. Foi no interior paulista que ele cresceu, junto dos seus cinco irmãos, todos homens.

Aos 16 anos, começou a jogar futebol no time juvenil do Botafogo de Ribeirão e, um ano depois, ingressou no curso de Medicina da Universidade de São Paulo. Conseguiu conciliar as duas atividades porque sabia que o pai só o deixaria seguir a carreira de jogador se concluísse o curso universitário. Ele se formou médico em 1977.

Do Botafogo para o Corinthians

Sócrates - Reprodução - Reprodução
Sócrates em ação pelo Corinthians nos anos 1980
Imagem: Reprodução

O jogador alto, magro e com pernas compridas começou a chamar a atenção porque tinha um desempenho acima da média apesar de quase não treinar, por causa da dedicação ao curso de medicina. O treinador Jorge Vieira, que assumiu o Botafogo em 1977, dava a ele um tratamento diferencial por conta disso.

Ainda assim, naquele ano Sócrates foi um dos principais jogadores da equipe que conquistou a Taça Cidade de São Paulo (o equivalente ao primeiro turno do Campeonato Paulista hoje) vencendo o time do São Paulo, no Morumbi. O jogador ainda se consagrou como o artilheiro da competição.

Seu desempenho chamou a atenção do Corinthians que, em 1978, o contratou por um valor que, à época, fez de Sócrates o jogador mais caro do Brasil. Em 20 de agosto daquele ano, ele vestiu a camisa do Corinthians pela primeira vez.

Democracia Corinthiana

Sócrates - Jorge Araújo/Folhapress - Jorge Araújo/Folhapress
Sócrates comemora título paulista do Corinthians com a camisa da Democracia Corintiana, em 1983
Imagem: Jorge Araújo/Folhapress

Logo nos primeiros anos de Corinthians, Sócrates mostrou a que viera. Inconformado com a mordaça imposta pela ditadura aos cidadãos brasileiros, junto com seus companheiros de clube Wladimir e Casagrande iniciou dentro do clube a construção de seu próprio sistema democrático, que viria a ser chamado de Democracia Corinthiana.

Com o lema 'ganhar ou perder, mas sempre com democracia', ele assim justificou a criação do movimento:

Vamos participar todos das decisões coletivas, vamos tentar fazer com que nada venha de cima para baixo, porque as melhores soluções sempre estão com quem está com a mão na massa, em qualquer ambiente corporativo que seja. Em qualquer sociedade é assim. Quem põe a mão na massa sabe onde tem problema e qual é a solução.

'Diretas Já'

O movimento levou Sócrates e seus companheiros a lutarem pela democracia também do lado de fora dos muros do Corinthians. Eles participaram ativamente da campanha pela volta dos direitos civis dos brasileiros fora dos campos, que ficou cunhada na história como 'Diretas Já'.

Sócrates - José Nascimento/Folhapress - José Nascimento/Folhapress
Wladimir, Sócrates, Juca Kfouri e Osmar Santos participam de comício pelas 'Diretas Já' em São Paulo
Imagem: José Nascimento/Folhapress

Ao lado de artistas, jornalistas e outros ativistas, os jogadores discursaram no palanque, estamparam em suas camisas frases pela volta da democracia e ele passou a comemorar seus gols com o punho erguido e cerrado, símbolo da luta das classes trabalhadoras.

Por suas atividades e opiniões políticas, Sócrates chegou a ser fichado pela polícia política da ditadura militar, juntamente com seu colega Casagrande.

Fiorentina e Seleção

Sócrates - Reprodução - Reprodução
Fiorentina chegou a reunir Sócrates e Passarella no mesmo elenco nos anos 80
Imagem: Reprodução

Em 1984, já com 30 anos, Sócrates foi jogar na Fiorentina, na Itália. Sua passagem por lá não foi muito bem-sucedida. Em entrevista à Revista Placar em 1986, o próprio jogador explicou que a passagem decepcionante pela Itália teve motivações políticas:

O futebol italiano é dominado pela Democracia-Cristã e eu era do lado do Partido Comunista Italiano. Os democrata-cristãos me aniquilaram

Sócrates - David Cannon/Allsport - David Cannon/Allsport
Sócrates e sua faixa de protesto na partida contra a Espanha, na Copa do Mundo de 1986
Imagem: David Cannon/Allsport

Pela Seleção Brasileira, ele jogou duas Copas do Mundo, em 1982 e 1986. Na primeira teve um excelente desempenho e foi o capitão daquela equipe que é considerada por muitos como a mais tática da história.

Em 1986, ele ficaria marcado por ter errado um pênalti nas quartas de final contra a França, que desclassificou o Brasil. Mas também é lembrado pela faixa que levou na cabeça, em protesto à violência praticada pelo Estado mexicano, que era a sede da Copa.

Cigarro e bebidas

Antes de encerrar a sua carreira, em 1989, Sócrates ainda jogaria pelo Santos e outra vez pelo Botafogo de Ribeirão Preto. Ele nunca escondeu que gostava de beber e que fumava. E os dois vícios acabaram abreviando a sua carreira e a sua vida.

Sócrates - Ana Carolina Fernandes/Folhapress - Ana Carolina Fernandes/Folhapress
Imagem: Ana Carolina Fernandes/Folhapress

Ainda atuou como técnico, treinando o Botafogo de Ribeirão Preto, depois a equipe equatoriana LDU. Em 1999, atendendo a um convite de um antigo companheiro de Seleção, Leandro, foi técnico do Cabofriense, do Rio de Janeiro.

Mesmo depois de pendurar as chuteiras, o 'magrão' seguiu atuante, nunca abandonou o ativismo político. Em seus últimos artigos publicados na imprensa, denunciou com indignação os despejo de famílias pobres que viviam em áreas onde seriam construídos os estádios para a Copa de 2014, que seria realizada no Brasil.

Sócrates morreu no dia 4 de dezembro de 2011, aos 57 anos, por complicações causadas pelo consumo excessivo de álcool.