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Craque do futebol francês trocou a Copa por luta pela libertação da Argélia

Reprodução A S Saint-Etienne
Imagem: Reprodução A S Saint-Etienne

Carolina Juliano

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

27/11/2022 06h00

O argelino Rachid Mekhloufi, revelado ao mundo pelo clube francês Saint-Etienne, era uma das estrelas do futebol da França da década de 1950. Foi campeão nacional pelo St-Etienne, em 1957, e era nome certo para integrar a seleção na Copa do Mundo que ocorreria na Suécia, em 1958.

Mas o craque resolveu deixar tudo para trás e lutar pela independência da Argélia, que desde 1830 era colônia da França. Numa noite de abril de 1958, fugiu do país com outros nove conterrâneos para criar a Seleção da Frente de Libertação Nacional (FLN), que jogaria partidas internacionais para levar a sua causa para o mundo.

Mesmo com a pressão da França para que a Fifa punisse seleções que aceitassem jogar amistosos contra a seleção da FLN, o time disputou 91 jogos em quatro anos. Foram 65 vitórias, 13 empates e 13 derrotas. Um futebol leve e libertário que encantou o mundo.

Mekhloufi jogou quatro anos por aquela seleção, que se dissolveu com o fim do conflito que tornou a Argélia livre, em 1962. Mesmo se sentindo um traidor por ter abandonado o Saint-Etienne no meio do campeonato, ele voltou ao clube em 1963 e foi recebido como herói. E ainda foi campeão nacional em 1964, 1967 e 1968.

Saiba mais sobre esse emblemático jogador que deixou os gramados aos 33 anos de idade, mas depois ainda foi o treinador da Seleção da Argélia na Copa do Mundo de 1982.

Infância e guerra

Rachid - Commons - Commons
Imagem: Commons

Rachid Mekhloufi nasceu em 12 de agosto de 1936, na cidade de Sétif, no norte da Argélia. Sua infância foi pobre, mas com forte presença de seus pais. O pai era policial e se esforçava para dar bons estudos aos filhos.

Desde pequeno era apaixonado pelo futebol e foi em sua cidade natal que começou a disputar as primeiras partidas. Entre a infância e a adolescência entrou para as categorias de base do USM Sétif, que na época era chamado de Union Sportive Franco-Musulmane de Sétif.

Aos nove anos de idade Mekhloufi teve uma experiência que ficou marcada em sua memória e certamente o motivou a integrar, mais tarde, a seleção da FLN: Ele presenciou o Massacre de Sétif, em 8 de maio de 1945, quando soldados franceses abriram fogo contra uma manifestação contra a dominação francesa, matando mais de 100 pessoas.

Foi um momento muito difícil para todos os argelinos. Para os olhos das crianças, eu tinha nove anos, foi um desastre. Fiz perguntas, mas ninguém conseguia responder? Foi algo terrível. Não desejo que ninguém viva isso

Rachid Mekhloufi, jogador argelino, ao site sofoot.com

Saint-Etienne e a França

Rachid - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Em 1954, aos 18 anos de idade, Mekhloufi foi contratado pelo Saint-Etienne a pedido do então treinador da equipe francesa. Nos cinco primeiros anos que jogou pelo clube, conquistou quatro títulos: um francês da primeira divisão (1956) no qual marcou 25 gols, uma Supercopa da França, em 1957, e duas Copas Charles Drago, em 1955 e 1958.

A crônica esportiva e a torcida apontavam Mekhloufi como uma das grandes esperanças do futebol francês e ele chegou a ser convocado pela seleção francesa quatro vezes, a primeira delas já no segundo ano em que ele jogava no país.

Copa do Mundo e fuga

Em 1958, jogadores argelinos que jogavam na França começaram a sumir misteriosamente. A Argélia passava por um período de agitação social desde que a França fora derrotada em Indochina, em 1954. Os argelinos começaram a se organizar e iniciaram uma guerra inspirada no que se passou na região do Vietnã e criaram a Frente de Libertação Nacional (FLN) para acabar com o domínio francês.

Rachid - Reprodução - Reprodução
A seleção da Frente pela Libertação Nacional
Imagem: Reprodução

A FLN estava organizando o seu time de futebol e usaria o esporte e a sua bandeira para lutar pela independência do país. Rachid Mekhloufi conta que foi o último a ser avisado da formação da seleção porque, como o seu pai era policial, os organizadores temiam que isso pudesse atrapalhar o plano.

O que me fez participar (da seleção da FLN) era a ideia que os franceses tinham sobre a Argélia e os argelinos. Como eles nos consideravam inferiores, nos rejeitavam e nos maltratavam.

Rachid Mekhloufi, jogador argelino, ao L'Équipe

A sua fuga foi, na verdade, um resgate cinematográfico. Um dia antes ele havia se machucado durante uma partida contra o Béziers, pela Copa da França, e teve que ser internado para ficar em observação. Outros jogadores se disfarçaram de enfermeiros e o resgataram no meio da noite. Ele viajou com mais nove jogadores, passando pela Suíça, Itália e chegando finalmente à Tunísia.

Imagens arquivadas no Instituto Nacional do Audiovisual da França mostram a chegada do grupo de jogadores a Tunes.

Futebol e resistência

Baseados em Tunes, onde foi instalado o governo provisório da Argélia durante a guerra pela descolonização, a seleção da FLN começou a disputar uma série de partidas amistosas contra países que apoiavam a causa da independência.

Segundo relatos da crônica esportiva da época, como a seleção não tinha a pressão e o comprometimento com a vitória, o time jogava um futebol alegre e leve, com dinamismo, sem ninguém guardar posição. Refletia o sonho de liberdade.

Durante quatro anos a França tentou conter a seleção da FLN, ameaçando de sanções países que aceitavam jogar com eles e proferindo sanções e punições aos jogadores que integravam o time. Com o fim da guerra, 1962, a Argélia se tornou, enfim, um país livre e todas as condenações feitas pela França foram anuladas.

Rachid - Reprodução - Reprodução
Rachid Mekhloufi retratado na revista em quadrinhos 'Un maillot pour l'Algerie' (uma camisa para a Argélia)
Imagem: Reprodução

Volta para a França

Depois de deixar a seleção da FLN, Rachid Mekhloufi foi jogar no Servette, da Suíça. Por ter sido acusado de traição não poderia voltar imediatamente para a França. Mas não demorou nem um ano para que o Saint-Étienne o chamasse de volta, em 1963.

Na ocasião, ele temia não ser bem recebido pela torcida, mas depois declarou a uma revista: "Quando entrei em campo, fez-se um silêncio terrível. Achei que iam me destroçar. Mas na primeira vez que peguei a bola, dei um drible e marquei o gol. Todo mundo me aplaudiu".

Mekhloufi jogou por mais cinco anos pelo Saint-Étienne, de 1963 a 1968. Venceu duas vezes o título francês e marcou 78 gols pelo time. Depois ainda viria ser técnico da Argélia na Copa do Mundo de 1982, a primeira participação do país em um mundial. Ele ainda está vivo e tem 86 anos.