Ministério dos Povos Originários (ou quase) já existe no Canadá há 56 anos
Entre as promessas de campanha do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está a criação do Ministério dos Povos Originários, que terá como objetivo, segundo Lula, proteger os indígenas do Brasil, para que "eles nunca mais sejam desrespeitados, para que eles nunca mais sejam tratados como cidadãos de segunda categoria".
Em um de seus discursos, ao falar sobre o novo ministério, Lula chegou a dizer que esta seria uma experiência inédita em âmbito federal no mundo, querendo dizer que apesar de outros países terem preocupações para com os seus Povos Originários, esse seria o primeiro ministério dedicado a eles de fato.
Mas, a realidade não é bem assim.
O Canadá, por exemplo, vem há muitos anos regulamentando as questões relacionadas aos seus Povos Originários. Desde a sua completa independência, em 1867, os assuntos relacionados aos indígenas sempre foram discutidos pela federação, mas os departamentos responsáveis por isso não tinham uma pasta própria. Até que, em 1966, o governo federal centralizou as demandas em um só local, com a criação do "Department of Indian Affairs and Northern Development", ou Departamento para o Desenvolvimento de Assuntos Indígenas e das Comunidades do Norte, em tradução livre.
De 1966 até os dias de hoje, o departamento ganhou diferentes nomenclaturas, que sempre variavam de acordo com o governo em questão e do nível de importância e envolvimento desse governo para com as questões dos Povos Originários. E apesar de ter nome de 'departamento', em todas as suas versões essa organização sempre foi liderada por um ministro federal.
Duas pastas
A mudança mais recente de organização desse departamento aconteceu em 2017, quando o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, anunciou a dissolução do então "Indigenous and Northern Affairs Canada" (Assuntos dos Indígenas e Comunidades do Norte), para a criação de duas pastas diferentes, que se tornaram efetivas em 2019.
Uma é o Indigenous Services Canada (Serviços Indígenas do Canadá), que trabalha para melhorar o acesso a serviços sociais para as os Povos Originários, e a outra o Department of Crown-Indigenous Relations and Northern Affairs (Departamento de Relações Coroa-Indígenas e Comunidade do Norte), responsável por cultivar a relação entre os Indígenas e os povos das comunidades do Norte com o Governo Canadense, permitindo que esses povos desenvolvam sua capacidade e sua visão de autodeterminação.
É quase como que o primeiro departamento passasse a regular os benefícios sociais dos indígenas e o segundo, as leis relacionadas a eles.
Leis, benefícios e o ato indígena de 1876
Apesar de todas as mudanças de nomes, o objetivo geral de todas as versões do departamento, ou departamentos, desde 1966, tem sido o de apoiar os Povos Indígenas e as comunidades do Norte para o autogoverno e a implementação de reivindicações de terras, desenvolvimento econômico, melhoria da qualidade de vida, melhoria da gestão das terras, recursos e dinheiro, ou seja, prevê a regulamentação e a suporte para o desenvolvimento das comunidades indígenas.
Muitas leis e benefícios aos Povos Originários foram regulamentados pelos departamentos, ou fomentados por eles. Mais de 80 atos foram transformados em leis e dezenas de benefícios sociais foram criados e instituídos pela reivindicação das comunidades e o apoio desses departamentos. Entre esses direitos conquistados, estão, por exemplo, a garantia de acesso à saúde e a condições dignas de moradia, como acesso à água potável e saneamento básico; o direito à terra e a própria regulamentação de seu uso, passando para a comunidade o poder para a criação das suas próprias normas de uso da terra e gestão ambiental, e alguns benefícios fiscais.
Pode parecer bastante, mas entre as comunidades indígenas ainda há uma forte crítica a como o governo canadense se relaciona com os Povos Originários, como explica Lana Eagle, membro da Primeira Nação Whitecap Dakota em Saskatchewan, Província do Canadá, e estrategista de relações indígenas "Inicialmente, podemos acreditar que uma boa mudança está chegando. Mas, na verdade, foi apenas no final de 2019 que a província de British Columbia, por exemplo, reconheceu nossos direitos humanos. E só aí o Canadá seguiu o exemplo, em 2021. Ainda assim tem um longo caminho a percorrer", diz Lana.
Vale dizer que muitas dessas leis são, na realidade, emendas feitas na maior lei federal criada para regulamentar as comunidades Indígenas do Canadá, o Indian Act, ou Ato Indígena, criado primeiramente em 1876, revisado em 1951, e existente até hoje. "O Ato Indígena (Indian Act) foi uma tentativa do governo canadense de nos assimilar a uma sociedade não-indígena", ressalta Lana Eagle
Essa lei federal, na verdade esse conjunto de leis, garantia alguns direitos e proteções para os Povos Originários, mas foi criada principalmente para subjugar os indígenas aos colonizadores europeus. O Ato Indígena, por exemplo, regulamentava quem tinha direito à terra e o seu uso, estabelecia quem poderia ser considerado indígena — uma mulher que se casasse com um homem branco perdia esse status —, proibia o direito ao voto e as manifestações culturais, e regimentava as famigeradas escolas residenciais, que instituíam uma educação catequizadora para todos as crianças indígenas e que foi responsável pela morte e desaparecimento de mais de 4 mil crianças.
Verdade e reconciliação
Acima de qualquer ministério ou departamento, existe no Canadá uma política de reparação aos Povos Originários desenvolvida pelo Governo Federal, criada, principalmente, a partir de demandas levantadas por uma comissão de pessoas indígenas. Essa comissão, formada em 1991, desenvolveu um relatório com cerca de 4 mil páginas e 440 recomendações.
"O estabelecimento da Comissão Real dos Povos Aborígines (em ingles, Royal Commission on Aboriginal Peoples) foi essencial para a admissão do governo federal de que havia desafios nas relações entre os povos indígenas, o governo federal e a sociedade canadense como um todo", diz Lana Eagle.
Parte importante do relatório diz respeito às escolas residenciais, que entre, 1879 e 1997, afetou a vida de aproximadamente 86 mil crianças indígenas e suas famílias. A partir do relatório, criou-se uma série de ações, entre elas uma indenização de mais de 1,9 bilhão de dólares canadenses pagos às famílias afetadas por esse sistema educacional que alienava os indígenas de suas origens e costumes, removia as crianças de seus pais e cuidadores, e pregava a violência como método educacional, o que levou a morte, como mencionado acima, de mais de 4 mil crianças.
Ainda como parte das ações, o governo canadense, em 2005, criou uma comissão da verdade e reconciliação, para dar voz aos indígenas afetados direta e indiretamente pelas escolas residenciais, e, em 2008, se desculpou formalmente pela criação e manutenção dessas escolas. "A reconciliação é importante porque permite que a população indígena, o Governo Federal e a sociedade canadense como um todo encontrem uma maneira de trabalhar juntas. Exige uma relação de confiança. Para que todas as partes prosperem, é preciso confiança", afirma Lana.
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