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'Só vemos reformas que não formam, deformam': Piedade encara o 'progresso'

Olhando para a cidade como um quintal, coletivo fortalece memória no ES - Francisco Xavier
Olhando para a cidade como um quintal, coletivo fortalece memória no ES Imagem: Francisco Xavier

Adriana Terra

Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP)

06/12/2022 06h00

"Tudo que vem de resposta enquanto política pública é no sentido de incentivar as pessoas a saírem dali, tirando toda essa tecnologia social, e não no sentido de criar condições para que as pessoas fiquem", diz a designer Juliana Lisboa, 35, do projeto Cidade Quintal, desenvolvido no morro da Piedade (ES). A iniciativa nasceu em 2016 a partir de parceria com o artista e arquiteto Renato Pontello, 38.

Durante a pandemia, além do temor da covid-19, o bairro da Piedade viveu um processo de evasão de moradores devido a brigas entre facções criminosas, resultando em mortes e incêndios de casas. Quem saiu tinha medo, e quem ficou também. Nesse período em que a Piedade aparecia com frequência no noticiário policial, profissionais externos se organizaram para auxiliar em questões sociais, como moradia. Entre os profissionais, estava, também, um grupo de artistas.

O projeto de Juliana, uma dessas artistas, aposta em reviver as memórias locais para reforçar a união dos moradores. Além de pessoas de fora, também participaram pedreiros do bairro, atuando em reparos nas casas antes de receberem a pintura.

Juliana diz que, apesar dessas intervenções, há questões de infraestrutura que não deveriam depender de uma iniciativa assim, e, sim, serem feitas pelo poder público.

O morro

É uma geografia que há décadas o samba já cantou. "Eu moro naquelas montanhas, e as pedras são minhas vizinhas", diz o hino da primeira agremiação capixaba, nascida em 1955 no bairro que dá também nome à escola: Piedade. "Para os novos não têm significado, mas é porque quem morava acima era favelado, quem morava abaixo era tratado como cidadão", conta Sandra Reis, 52, benzedeira e moradora do bairro.

Localizada bem no centro de Vitória (ES), a Piedade - um território negro - é marcada tanto por expressões culturais afro-brasileiras e pela existência de muita natureza no seu entorno quanto pela exclusão de políticas públicas. "Aquelas montanhas" separam mundos, o que se reflete até na entrega de correspondência, com as casas lá do alto tendo que retirar as cartas em uma casa lá embaixo, cenário conhecido em outras periferias do país.

1 - Thais Goboo - Thais Goboo
A designer Juliana Lisboa
Imagem: Thais Goboo

"A gente foi fazendo parte desses diálogos e construindo um fio da meada com a intenção de ocupar a parte mais alta do bairro, não só no sentido de preencher com cor, pessoas, mas também com simbolismos, narrativas", conta Juliana.

E se a cidade fosse como um quintal?

"A gente perguntou a um morador como ele resumia o Romão [bairro onde eles faziam um trabalho] e ele disse: 'Isso aqui é meu quintal, é onde eu fico à vontade, solto pipa com meu filho'. Essa coisa da convivência, da vida social que os territórios periféricos produzem. E a gente pensou: 'Imagina se todos os espaços da cidade fossem mais como um quintal?'", conta.

A arte é só parte de um processo de escuta e construção comunitária que busca trazer para a paisagem identidades territoriais. Dessa forma, por exemplo, nasceram dois murais de 260 m² entre os bairros do Romão e Forte São João, retratando os sentimentos de união e cooperação presentes ali. Também assim foi colorido um espaço na comunidade do Floresta, criando um ambiente imersivo onde há quadra e parquinho. Já as fachadas do Mercado Municipal da Vila Rubim passaram a contar histórias de diversidade religiosa e pesca, enquanto as casas da Ilha das Caieiras evidenciam personagens locais e práticas importantes, como desfiar siri, além da história de um local onde "no começo era mangue" e onde "todo mundo é parente".

Buscamos trazer para paisagem elementos que estão ali, naquele cotidiano, nas pessoas, nesse imaginário coletivo que muitas vezes não está nos livros de história, mas que são narrativas legítimas, estão ali na oralidade Juliana Lisboa, designer

Dali minha família nunca saiu

2 - Francisco Xavier - Francisco Xavier
Sandra Reis é moradora do bairro de Piedade, em Vitória (ES)
Imagem: Francisco Xavier

"Os antigos simplificaram falando assim: nós vivemos no coletivo.", diz Sandra Reis, moradora de Piedade. Ela diz que as gerações mais velhas de sua família foram para o bairro e dali nunca mais saíram. Por lá, aprendeu a cuidar de crianças mais novas, a fazer o feijão render para todos que chegassem em sua casa, a ler e escrever com ajuda da irmã mais velha, a torrar cascas de ovo no fogão à lenha para juntar na farinha, a dividir o pão com quem estava sem na escadaria do caminho de casa.

No início do projeto em Piedade, Dona Sandra, como é conhecida, perguntou às crianças o que elas queriam ser quando crescessem. Lembra que algumas só choraram. "Aquilo ali pra mim foi um pesadelo, porque mesmo com todas as dificuldades que vivi, eu tinha sonho", diz ela.

Uma coisa que a gente ouviu muito de moradores, respondendo ao que esperavam da Piedade do futuro, foi: 'a Piedade do passado'., Juliana Lisboa.

3 - Francisco Xavier - Francisco Xavier
"Eu moro naquelas montanhas, e as pedras são minhas vizinhas", a história do bairro de Piedade (ES)
Imagem: Francisco Xavier

Sandra Reis sabe bem o sentido desse passado mencionado por seus vizinhos. "A gente trabalhava em comunidade. Daí os outros falam: eles são muito interligados, mas não têm nada. Mas é esse nada que fortalece", diz ela.

A moradora reforça a autonomia que sente vivendo ali, onde sempre houve muito cultivo - jiló, quiabo, chuchu, abóbora. "Até hoje em qualquer quintal em que você chega, você encontra algo cultivado", diz ela. Uma autonomia resistente que nem sempre a urbanização considera.

"Assim que se foi modernizando as coisas, tanto esse avanço diminuiu nosso contato direto com a natureza, como nos foi tirando aquilo que a gente achava que era nosso", resume a benzedeira. Dessa forma, as "melhorias urbanas" não chegaram por completo em Piedade, mas a cultura local também ficou ameaçada.

"Assim que se foi modernizando, esse avanço diminuiu nosso contato direto com a natureza, foi tirando aquilo que a gente achava que era nosso", diz a benzedeira.

A gente só está vendo reformas que não nos formam, nos deformam. Sandra Reis, benzedeira e moradora de Piedade

Sonhar e manter a história viva

4 - Francisco Xavier - Francisco Xavier
Memorial Nascente às parteiras no bairro de Piedade, em Vitória (ES)
Imagem: Francisco Xavier

O projeto Ativar Piedade foi adaptado para uma apresentação em São Paulo, na 13ª Bienal de Arquitetura, onde pôde ser conhecido por meio de uma instalação com áudios, mapas, fotografias e ambiente imersivo no Centro Cultural São Paulo.

"Como assim, Piedade em São Paulo? O morro não pode sair daqui", ouviu das crianças Dona Sandra, ao retornar da capital paulista. Ela conta que só essa troca sobre a viagem e a dinâmica do projeto estimularam a imaginação, o sonho, que andava escasso.

Olhar para os pequenos, lembrando sempre dos mais velhos, é prática cotidiana na vida da moradora. "Porque a comunidade só é viva com a história de vida", diz ela.