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Portugal só pensa no Brasil para tirar vantagem, diz sociólogo português

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos esteve em São Paulo em novembro para lançar seu novo livro "Descolonizar: Abrindo a história do presente" - Deivyson Teixeira/Divulgação
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos esteve em São Paulo em novembro para lançar seu novo livro 'Descolonizar: Abrindo a história do presente' Imagem: Deivyson Teixeira/Divulgação

De Ecoa, em São Paulo (SP)

06/12/2022 06h00

O Brasil se tornou independente em 1822, há 200 anos. Mas, na visão de estudiosos como Boaventura de Sousa Santos, a real independência ainda está por vir. Da parte portuguesa, ele vê dificuldade em rediscutir o assunto.

"As classes dominantes em Portugal sempre que pensam em África ou no Brasil ainda é para tirar alguma riqueza ou obter vantagem", afirma em entrevista a Ecoa.

Em busca de sua própria descolonização, o sociólogo português e hoje professor da Universidade de Coimbra viveu alguns meses na favela do Jacarezinho nos anos 1970 para ouvir a população em sua pesquisa de doutorado pela Universidade de Yale, que mostrou a existência de um direito próprio da comunidade. Fez amizade com lideranças e não largou mais os movimentos sociais brasileiros.

Ali começou seu aprendizado junto aos mais pobres, negros, indígenas e mulheres - os mais afetados pela colonização portuguesa em países como Brasil. Mais tarde, deu aos conhecimentos populares desses grupos o nome de "epistemologias do Sul" e propôs o que hoje chama de "ecologia de saberes", quando os conhecimentos populares passam a ser tão valorizados quanto a ciência.

Em São Paulo para o lançamento de seu novo livro, "Descolonizar: Abrindo a história do presente", ele falou a Ecoa sobre a dificuldade dos portugueses em rever criticamente o colonialismo e a ideia de Brasil e Portugal serem países "irmãos".

O sociólogo veio ao Brasil lançar o novo livro 'Descolonizar: Abrindo a história do presente' - Reprodução/Twitter @editoraboitempo - Reprodução/Twitter @editoraboitempo
O sociólogo veio ao Brasil lançar o novo livro 'Descolonizar: Abrindo a história do presente'
Imagem: Reprodução/Twitter @editoraboitempo

Ecoa - O senhor vem colocando seus conhecimentos a serviço dos movimentos sociais desde os anos 1970. O que tem chamado sua atenção dentro dos movimentos aqui no Brasil?

Boaventura de Sousa Santos - Primeiramente, foi onde eu aprendi a tal sabedoria que procuro ter. Foram eles que de alguma maneira mantiveram a minha integridade, porque eu vi que eu podia ser útil, mas só se soubesse aprender deles. Me ensinaram que eu não podia ser nunca um intelectual de vanguarda: costumo dizer que sou um intelectual de retaguarda. Eu vou com os movimentos, procuro acompanhá-los.

Podia contar muitas histórias, mas só lhe dou uma: estou numa ocupação do MTST em São Bernardo do Campo, muito preocupado com o uso político do evangelismo, porque o ideal deles é de alguma maneira transformar as lutas políticas no Brasil em lutas religiosas, o que é extremamente perigoso

Há uma senhora na ocupação que é uma mulher de esquerda e é evangélica. E ela me diz: 'sabe professor, é que eu fui para a igreja evangélica e ganhei um salário'. Acontece que, quando se converteu, também levou o marido, que gastava o dinheiro todo na cachaça. Agora, como ele não bebe, eles têm um salário ao fim do mês.

É isso que a gente por vezes até nas políticas de esquerda não entende. A gente tem que reinventar a esquerda, porque ela deixou de saber falar com as populações onde elas vivem.

Hoje os pastores evangélicos sabem provavelmente lidar melhor com as aspirações e a linguagem das classes populares do que os partidos.

Ecoa: Neste ano, o artista brasileiro Rodrigo Saturnino sofreu ataques xenófobos após exibir em Lisboa uma bandeira com os dizeres: "Não foi descobrimento, foi matança", em referência à colonização portuguesa no Brasil. Há uma resistência entre os portugueses em revisitar esse passado?

Boaventura: Toda a Europa tem muita dificuldade. Sobretudo para um país como Portugal, de desenvolvimento intermédio, que foi pioneiro na expansão colonial europeia e dominante durante muito pouco tempo. No século 16, esse colonialismo transformou-se quase numa segunda identidade do país.

Estabelecer relações de benefício mútuo é a grande dificuldade. As classes dominantes em Portugal, sempre que pensam em África ou no Brasil, ainda é para tirar alguma riqueza ou obter alguma vantagem. Nós tínhamos a obrigação de ter uma relação mais cordial com o mundo.

Deveríamos ter consciência de que muitos dos nossos privilégios estão assentados nessa violência, que muitos dos nossos monumentos são monumentos a essa violência e que muitas das nossas obras de arquitetura não podem ser explicadas sem isso.

A maravilhosa arquitetura das casas de Barcelona do [arquiteto catalão Antoni] Gaudí, por exemplo, não é explicável sem o mercado escravo e a plantação do açúcar no Haiti, porque era a riqueza trazida pelos proprietários [das colônias] que lhes permitia construir essas casas.

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos - Juca Varella/Folhapress - Juca Varella/Folhapress
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos
Imagem: Juca Varella/Folhapress

Ecoa: De onde vem a ideia de que Brasil e Portugal são países irmãos?

Boaventura: Os colonos que se beneficiaram da colonização e aqueles que assumiram a independência para o seu próprio benefício foram irmãos numa empresa de exploração, de submissão, de eliminação dos povos indígenas, dos povos quilombolas, da injustiça toda que o colonialismo gerou.

Brasil e Portugal são irmãos por uma causa que não é bonita, e deviam fazer um exame de consciência: que irmandade é esta? Foi essa irmandade que tornou as sociedades excludentes.

Até os colonizadores poderiam ser melhores se não tivessem sido eles próprios dominados pelo colonialismo, que criou esta ideia de ver o outro apenas pela riqueza, não conhecer a diversidade, nem ter qualquer interesse cultural, de, sobretudo, estar sempre na busca daquilo que possa roubar, extrair dele.

Ecoa: Os conhecimentos de comunidades indígenas, quilombolas e outras - a que você dá o nome de "epistemologias do sul" - podem ajudar a criar soluções para esse cenário?

Boaventura: As epistemologias do sul são fundamentais para evitar a catástrofe ecológica que se apresenta. Vivemos num paradigma de pensamento eurocêntrico, que tende a transformar todos os problemas em problemas técnicos, e portanto considera que haverá uma solução técnica para a crise ecológica.

Sabemos muito bem que muitas das soluções técnicas inventadas no passado criaram depois problemas e não resolveram efetivamente as questões.

Aí é que entram as epistemologias do sul. Não apenas o conhecimento da tecnociência, dos grandes pesquisadores, mas das populações que vivem no seu cotidiano a degradação da natureza, que têm as suas outras maneiras de lidar com ela, serão absolutamente fundamentais para termos uma transição ecológica.

Enquanto para o pensamento eurocêntrico dominante nas economias mais desenvolvidas a natureza nos pertence, para os povos indígenas, camponeses, populações ribeirinhas, nós pertencemos à natureza. Ela é a nossa mãe e temos que respeitá-la, não podemos destruí-la. Era necessário haver outra concepção de vida.

Por exemplo, 70% da nossa alimentação vem da economia camponesa, da agricultura familiar, cooperativa e associativa. Por que as nossas faculdades de administração, de economia só estudam a economia capitalista? Podiam estudar todas as outras e assim haveria mais gente sensibilizada porque além do agronegócio há a agroecologia que é fundamental para transição.

Ecoa: Você indica uma série de leituras complementares de autores negros e indígenas brasileiros a esse novo livro, de Maria Firmina dos Reis a Ailton Krenak. Como eles influenciaram seu pensamento e qual a importância de referenciá-los?

Boaventura: Nesta edição brasileira, procurei fazer um pouco de justiça aos autores brasileiros que muito me influenciaram. Para mim, foram absolutamente importantes amigos como Ailton Krenak, com quem tenho estado frequentemente. São fundamentais para ir me iluminando nas minhas concepções sobre o futuro da humanidade em termos ambientais.

Quando o debate era sobre as ações afirmativas e o sistema de cotas, eu socorri-me fundamentalmente na Sueli Carneiro. Eu nem a conhecia pessoalmente, fui ler os seus livros porque aqui alguns autores de esquerda brancos diziam que eu a escrever os artigos na Folha de São Paulo mencionando a necessidade das cotas, estava a criar racismo no Brasil, porque o Brasil não era uma sociedade racista.

Eles estavam completamente intoxicados pela ideia da democracia racial do Gilberto Freyre e eu estava bem escudado na Sueli Carneiro e em outros, e isso para mim foi muito importante.

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