Topo

Quem foi o comunista que quase comandou a seleção brasileira tricampeã?

Reprodução
Imagem: Reprodução

Edison Veiga

Colaboração para Ecoa

09/12/2022 06h00

João Alves Jobim Saldanha (1917-1990) foi desses personagens múltiplos cuja biografia é cheia de reviravoltas. Apelidado de 'João Sem-Medo' pelo gênio da dramaturgia e da crônica esportiva Nelson Rodrigues (1912-1980), João Saldanha era formado em direito e atuou como jogador de futebol, jornalista, escritor, técnico de futebol e político. Em toda a sua trajetória, sobressaiu-se a sua postura militante: ele era comunista.

Filiado ao Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, Saldanha teve uma atuação profundamente crítica na oposição à ditadura cívico militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985, mas isso não impediu que ele se tornasse o técnico da seleção brasileira responsável pela classificação do escrete nacional à Copa de 1970.

Suas convicções políticas, contudo, estão no cerne da até hoje mal compreendida demissão dele, pela cúpula da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), antecessora da atual CBF, em 17 de março daquele ano, menos de três meses antes do início da Copa de 70. Mesmo tendo obtido sucesso em sua campanha à frente do time, com 14 vitórias, um empate e apenas duas derrotas — e uma campanha nas Eliminatórias com 100% de aproveitamento.

Denúncia a estrangeiros

João Saldanha - ACERVO EBC - ACERVO EBC
Imagem: ACERVO EBC

De acordo com seu biógrafo, o jornalista André Iki Siqueira, foram os desentendimentos fora das quatro linhas que sacramentaram a saída de Saldanha do comando da seleção. "Ele deu uma entrevista a jornalistas estrangeiros, no México, com uma pilha de documentos mostrando que havia prisão [política] e tortura no Brasil. Isso caiu como uma bomba em Brasília", conta Siqueira, autor do livro 'João Saldanha: Uma Vida em Jogo'.

Saldanha havia ido ao país latino-americano para averiguar locais disponíveis para a concentração, os treinos e a hospedagem da seleção brasileira durante o torneio mundial, que seria sediado ali. E, esperto, aproveitou a ocasião para botar a boca no trombone.

Era o Brasil em plena ditadura militar, sempre trabalhando aquela coisa ufanista e querendo usar o futebol para camuflar o que estava acontecendo nos porões do regime. Se ganhasse a Copa sob o comando de João, como que ficaria? Um comunista traria a Taça Jules Rimet na mão? João se tornou um problema de Estado. Era preciso tirá-lo dali.

André Iki Siqueira, escritor e jornalista

A questão então teria sido plantada: aventou-se que o então presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) queria de todo jeito que Dario dos Santos, mais conhecido como Dadá Maravilha, fosse convocado. Mas Saldanha já tinha a equipe fechada.

Trocou-se então o comando da seleção. Saldanha deixou a equipe praticamente pronta para que Mário Jorge Lobo Zagallo, adicionando algumas peças como o Dadá Maravilha, treinasse o escrete nacional que voltaria com o caneco do México.

Um revolucionário de família

João Saldanha - Acervo UH/Folhapress - Acervo UH/Folhapress
O técnico João Saldanha em 1969, quando preparava a Seleção Brasileira para a Copa do tri
Imagem: Acervo UH/Folhapress

Nascido em Alegrete, no Rio Grande do Sul, Saldanha era filho de uma família já revolucionária — seus pais envolveram-se na Revolução de 1923 e ele, aos 6 anos, ajudava no contrabando de armas do Uruguai para o Brasil.

Passou a infância entre o Paraná e o Rio Grande do Sul. Nos anos 1930, sua família mudou-se para o Rio. Na então capital do Brasil, Saldanha filiou-se ao Partidão ainda na juventude. Sua militância era intensa. Em 1947, ele chegou a ser preso pelo Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS. Durante sete anos, precisou ficar na clandestinidade.

Teve uma curta carreira como jogador de futebol, pelo Botafogo, e graduou-se em Direito pela Universidade do Brasil, atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tornou-se dirigente esportivo e, por um curto período, atuou como técnico do Botafogo. Em 1957, foi ele quem comandou o time na final histórica, em que o esquadrão protagonizado por Garrincha, Didi e Nilton Santos goleou o Fluminense por 6 a 2 e faturou o estadual carioca.

Nos anos 1960, enveredou pelo jornalismo, como cronista esportivo e, depois, comentarista de rádio e de televisão.

Ele foi um revolucionário da crônica esportiva. Todos dizem que antes do João iniciar esse período como comentarista esportivo, a linguagem do setor era muito pesada. Ele tinha um poder de síntese muito forte e conseguia falar com todas as classes sociais.

André Iki Siqueira, escritor e jornalista

Um comunista na seleção

João Saldanha - Folhapresss - Folhapresss
Técnico João Saldanha entre Carlos Alberto Torres (dir) e Jairzinho, durante treino da Seleção Brasileira em 1969
Imagem: Folhapresss

Depois do fracasso da seleção amarelinha na copa de 1966, Saldanha acabou sendo uma das vozes mais críticas ao time nacional. E foi isso que o alçou à empreitada como técnico principal. "A preparação da seleção estava um fracasso, um desacerto completo", diz Siqueira. "João era o maior crítico. Batia direto, diariamente. Aí, o Havelange foi lá e convidou-o para comandar a seleção."

João Havelange (1916-2016) era o presidente da CBD — depois chegaria ao posto de líder máximo da Fifa, a Federação Internacional de Futebol. "João topou à queima-roupa, sem consultar ninguém. Quando chegou em casa, a família ficou apavorada: 'você está maluco, não pode fazer isso'. Claro, era o auge da ditadura, a parte mais grave do regime", comenta o biógrafo.

Havelange estava atuando como um enxadrista: com o convite, pretendia não só calar seu mais renitente crítico, como também fazê-lo fracassar aos olhos do povo. "Ele achava que o João não ia dar jeito na seleção. Mas ele demonstrou inteligência, pegou os melhores do Santos e do Botafogo, recheou com Cruzeiro, Corinthians, Palmeiras e tal, e montou um timaço", conta Siqueira.

Comentarista e político

João Saldanha - Folhapress - Folhapress
Técnico João Saldanha da Seleção Brasileira, durante entrevista em 1969
Imagem: Folhapress

O tiro saiu pela culatra e João Saldanha, o comunista revolucionário, virou um problema para a CBD resolver. Passada a Copa do Mundo de 1970, Saldanha retornou ao jornalismo esportivo. Ainda teve uma participação política em 1985, quando foi candidato a vice-prefeito do Rio, pelo PCB. Perdeu.

Bastante debilitado, com problemas pulmonares causados por um tiro que ele levou durante sua militância na juventude e agravados pelo seu vício tabagista, Saldanha foi, desobedecendo seus médicos e contrariando familiares, para a Itália em 1990 para atuar na cobertura da Copa, na equipe da hoje extinta TV Manchete. Ele morreu em Roma, em 12 de julho de 1990.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Ao contrário do informado anteriormente, João Saldanha não foi candidato a prefeito, mas, sim, a vice-prefeito.