Topo

Há 142 anos nascia o escritor inimigo do futebol e do 'nacionalismo fácil'

Reprodução
Imagem: Reprodução

Tainara Rebelo

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

10/12/2022 06h00

Homem negro, nascido livre exatos sete anos antes da abolição da escravidão no Brasil, o escritor Lima Barreto (1881 - 1922) foi um dos primeiros cronistas - ácido e crítico - da sociedade brasileira no início da República. Retratou a sociedade carioca, na qual vivia, de maneira única e seus escritos e atitudes faziam duras críticas à mentalidade da época.

"Sua visão crítica de assuntos como a violência contra a mulher, a sociedade patriarcal e até mesmo ao futebol, que considerou apropriação da cultural inglesa, fazem dele um autor atemporal. Suas obras ainda são relevantes e podem servir de críticas ao tempo em que vivemos", diz o professor de literatura e mestrando do PPGEL-UFMS, Augusto Ferreira Sampaio Rosa.

Contra a "paixão nacional", Lima Barreto escreveu as crônicas "Sobre o Football" e "Bendito Football", chegando a criar a Liga contra o Football. Sua birra não era infundada, na época o esporte bretão era praticado pelas elites brasileiras e muitos clubes não aceitavam jogadores negros.

Filho de tipógrafo e afilhado de visconde

Nascido em Laranjeiras (RJ) em 13 de maio de 1881, exatos sete anos antes da abolição da escravidão, Afonso Henriques de Lima Barreto Filho era filho do tipógrafo João Henriques de Lima Barreto e da professora primária Amália Augusta, ambos negros que eram livres. Com a morte prematura de sua mãe, aos 25 anos por conta de uma tuberculose, seu pai fez de tudo para garantir que o seu primogênito por direito (o casal havia perdido o filho mais velho) tivesse uma boa educação e se tornasse doutor.

Lima Barreto - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Como seus pais eram defensores do Império e o casal tinha relacionamento estreito com a elite da época, Lima era afilhado do Visconde de Ouro Preto, o que permitiu que ele tivesse acesso a um estudo de qualidade. Cursou o ciclo básico em boas escolas e depois entrou na escola politécnica do Rio de Janeiro, em 1897, para estudar engenharia.

Mas era o único aluno negro da sala de aula, e acabou sofrendo racismo e discriminação pela cor de sua pele. Lima não concluiu os estudos porque teve que assumir o sustento de seus irmãos depois que o pai foi internado em um sanatório para pessoas com transtornos mentais.

Lima Barreto foi, então, trabalhar como escrevente no governo. Na mesma época, começou a atuar no ramo jornalístico, escrevendo para diversos jornais e revistas cariocas.

Quando lemos uma obra dele, conseguimos identificar muitos traços biográficos na construção da narrativa e das personagens. Ele, inclusive, fazia um pouco dessa prática até quando jornalista, pois escrevia sobre o subúrbio carioca, mesma região onde morava com sua família

Augusto Ferreira Rosa, professor de literatura

Realidade e ficção se misturam

Lima Barreto escrevia o que vivia, criticava duramente aquilo que não concordava, e para dar voz a isso usava os personagens em seus livros. Depois, soube-se, as falas e sentimentos deles se misturavam com anotações do seu diário pessoal.

Lima Barreto - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Sua obra mais famosa 'Triste fim de Policarpo Quaresma' (1915) faz duras críticas a outro tema bastante abordado pelo autor, os políticos do país com seu "nacionalismo fácil e o patriotismo estridente" (p.332). Outras de suas publicações defendiam o anarquismo, vertente política que Lima acreditava ser a "salvação" do país.

Em 1922, ano de sua morte, terminou "Clara dos Anjos", livro que vinha escrevendo durante toda a sua vida e que retratava a luta da mulher para sobreviver na sociedade. O livro conta a história de uma moça negra cheia de sonhos, que termina grávida, só e desiludida, baseado em histórias que que viu morando no subúrbio carioca.

Suas obras não foram bem recebidas naquela época, mas hoje trazem um relato valioso que corresponde a parte da história brasileira

Augusto Ferreira Rosa, professor de literatura

Coincidências e dualidade

O escritor acabou virando um personagem de seu próprio livro quando "Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá" um homem que dizia que não sabia morrer. Preocupado em não conseguir bancar os custos fúnebres quando seu pai doente falecesse, Lima Barreto acabou morrendo um dia e meio antes de pai, sem cuidar dos trâmites que envolviam velório, enterro ou caixão de nenhum deles, tal qual o seu personagem.

Sua biografia diz ainda que ele era "do contra". Detestava os funcionários públicos e era um deles. Odiava futebol, samba e carnaval, mas defendia os hábitos populares. Era jornalista, mas fazia críticas às publicações, e se irritava solenemente com a cidade de Petrópolis e o bairro de Botafogo, mesmo tendo nascido no estado do RJ.

Três vezes internado no hospício

Lima Barreto - Wikimedia commons - Wikimedia commons
Detalhe da ficha da primeira internação manicomial de Lima Barreto
Imagem: Wikimedia commons

Quando começou a publicar seus romances, por volta de 1914, Lima começou a frequentar a boemia carioca. Ele bebia muito e acabava tendo alucinações e amnésia, por isso seu irmão o internou por três vezes no hospício, onde eram tratados os alcoólatras na época.

Autodeclarado negro, na primeira internação, o funcionário do hospital que anotou os seus dados classificou o escritor como "branco". Acredita-se ele tenha feito isso em uma tentativa de agradar a família de um funcionário público, cargo de grande prestígio na época. Numa segunda internação, ele foi considerado "pardo".

Lima Barreto faleceu aos 41 anos de idade em 1º de novembro de 1922. Morreu após sofrer um ataque cardíaco.

Homenagens

Em 1982, o escritor foi tema do samba-enredo no carnaval do Rio de Janeiro pela Escola de Samba GRES Unidos da Tijuca, intitulado 'Lima Barreto, mulato, pobre, mas livre'.

Em 2019, ele foi homenageado na 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), quando foi lançada sua biografia "Lima Barreto - Triste Visionário", de Lilia Moritz Schwarcz. Em 2022, a Flup (Festa Literária das Periferias) 2022 celebrou o modernismo negro, homenageando Lima.

Lima Barreto - Wikimedia commons - Wikimedia commons
Monumento ao escritor e jornalista Lima Barreto na cidade do Rio de Janeiro
Imagem: Wikimedia commons