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Acusada injustamente, ela foi presa por organizar futebol feminino no país

Capa do Jornal A Noite noticia a prisão de Dona Carlota, em 10 de janeiro de 1941 - Biblioteca Nacional Digital Brasil
Capa do Jornal A Noite noticia a prisão de Dona Carlota, em 10 de janeiro de 1941 Imagem: Biblioteca Nacional Digital Brasil

Carolina Juliano

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

17/12/2022 06h00

Você sabia que o futebol feminino foi proibido durante 38 anos no Brasil? A lei 3.199, de 1941, decretada pelo então presidente Getúlio Vargas, dizia: "às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza".

O futebol feminino vivia uma efervescência no início dos anos 1940, partidas chegaram a ser vistas por mais de 60 mil espectadores. No centro da ascensão das mulheres nos gramados estava uma senhora de sessenta e poucos anos, que acabou presa, acusada injustamente de fazer das equipes de futebol uma fachada para que as jogadoras vendessem seus corpos.

Ela organizou ligas e campeonatos femininos

Carlota Alves de Resende era mais conhecida como a Dona Carlota, mas não se sabe muito sobre a vida pessoal dela. Relatos da época dão conta de que era uma mulher de origem humilde, que nasceu em Pilares, no subúrbio do Rio de Janeiro, e tinha contatos estreitos com dirigentes esportivos.

No final dos anos 1930, ela organizou em sua casa o time feminino de maior evidência na época: o Primavera Atlético Clube.

Na casa de Carlota funcionava a sede do clube, era o lugar onde elas se encontravam para treinar e confraternizar.

Carlota - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil
Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil

Ela também chegou a organizar outros clubes, em outros bairros, e como uma dirigente experiente, montou ligas e campeonatos entre os times femininos.

No início dos anos 1940, o Rio de Janeiro tinha 15 equipes competindo entre si, a maioria organizada por ela.

A modalidade estava se tornando tão popular que dois clubes, o Cassino do Realengo e Sport Club Brasileiro, foram chamados para fazer um jogo preliminar no recém-inaugurado Estádio do Pacaembu, onde jogariam os times masculinos de São Paulo e Flamengo.

Foi dona Carlota quem organizou essa viagem.

As críticas machistas que levaram o futebol feminino a ser proibido

Carlota - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil
Equipes femininas do Cassino do Realengo e Sport Club Brasileiro em jogo no Estádio do Pacaembu, em SP
Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil

Como ainda não era comum ver mulheres jogando futebol, as equipes formadas por Dona Carlota ganharam notoriedade e espaço nas páginas dos jornais esportivos da época. Consequentemente, as jogadoras começaram a ser remuneradas por suas apresentações. Esse foi um dos motivos de indignação da sociedade que levou à proibição do futebol feminino.

O jogo no Pacaembu foi assistido por um público de 65 mil pessoas, segundo a imprensa da época, deu ainda mais visibilidade à prática do futebol feminino e a modalidade passou a receber fortes críticas.

O jornal A Noite divulgou, uma semana antes da partida no Pacaembu, uma carta endereçada a Getúlio Vargas por um cidadão chamado José Fuzeira, alertando o presidente sobre os perigos que a prática do futebol poderia provocar nas mulheres.

As críticas tinham como base argumentos médicos, que defendiam que o futebol poderia prejudicar a função reprodutora das mulheres. Mas também tentavam desqualificar moralmente a prática da modalidade, associando o futebol à perda da reputação da mulher na sociedade.

Denúncia e prisão

Carlota - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil
Capa Jornal Imparcial de 11 de janeiro de 1941 noticia a prisão de Dona Carlota Alves de Resende
Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil

Em janeiro de 1941, Carlota Alves de Resende foi presa no Rio de Janeiro acusada de explorar financeira e sexualmente as jogadoras do Primavera Atlético Clube, e também as de outros times do subúrbio carioca que ela ajudou a fundar.

Na época, ela estava organizando junto com o empresário argentino Afonso Doce uma excursão do Primavera por diversos países da América Latina.

D. Carlota, a "paredra" do football feminino, protesta a inocência - Está na 'cerca' com todo o team - A "concentração" na Polícia - Do ground para os "dancings" - O "bicho" das jogadoras - Leônidas de saias - Aviso sobre o batom e o rouge (Texto na Página 3)

Chamadas da capa do jornal A Noite de 11 de janeiro de 1941

Segundo o livro 'Deve ou não deve o football invadir o domínio das saias? Histórias do futebol e mulheres no Brasil', de Caroline Almeida, a excursão de jovens jogadoras ao exterior ia ao encontro do projeto político do Estado Novo, pois o futebol era considerado um forte símbolo nacional e "seria uma afronta homens estrangeiros custearem a exibição dos corpos de mulheres brasileiras em outro país".

Dona Carlota ficou presa por apenas 48 horas porque não encontraram em sua casa, que era usada como sede do Primavera A. C., e nem nos depoimentos das jogadoras nenhum indício da promiscuidade da qual ela estava sendo acusada.

No entanto, o fato fortaleceu a campanha contra o futebol feminino no Brasil, culminando na sua proibição pelo artigo 54 do Decreto-Lei nº 3.199, publicado em 1941.

O Decreto ficou em vigor até 1979, quando foi extinto pelo Conselho Nacional de Desportos. Durante esse período, surgiram algumas organizações para a prática do futebol feminino, porém foram coibidas pela Justiça, pela polícia ou mesmo criticadas socialmente.