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'São Paulo mostra que a desigualdade está aqui, latente e tangível'

Midria na Marcha das Mulheres Negras, em São Paulo - Instagram
Midria na Marcha das Mulheres Negras, em São Paulo Imagem: Instagram

Luciana Bugni

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

25/01/2023 04h00

A praça principal de Paraty (RJ) estava lotada no sábado à noite. A expectativa da maioria era ver o ator (e escritor) Lázaro Ramos, que participaria da última mesa da noite da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), no fim de novembro de 2022. Mas quem levantou literalmente o público foi a poeta paulistana Midria da Silva Pereira, de 23 anos.

Com voz mansa e rostinho de quem acabou de entrar na faculdade, Midria calou centenas de pessoas com seu poema "A menina que nasceu sem cor". "Eu sou a menina que nasceu sem cor porque nasci num país sem memória", diz um dos versos que discute racismo com alfinetadas e uma pitada de bom humor.

Midria nasceu e morou até a adolescência no extremo da zona leste de São Paulo, no bairro Recanto Verde do Sol. O local fica a 40 km do centro da cidade. Só conheceu a Avenida Paulista com 14 anos, num passeio de carro com o namorado de uma tia, depois de uma ida ao cinema. Entrou na faculdade em 2017 e o curso de Ciências Sociais, na USP, a levou ao outro lado da metrópole, na zona Oeste (são 70 km do bairro onde nasceu).

"Até então, minha circulação por São Paulo estava muito restrita. Não tinha referência do que era a cidade fora dali. São Paulo é gigante, são muitas cidades dentro de uma e isso exemplifica muitas desigualdades", diz.

O direito à cidadania como um lugar da existência plena, à saúde, ao transporte, à educação, ao saneamento e à cultura passa, segundo ela, por essa dificuldade de acesso. "São Paulo não dá conta de todas as questões. O Brasil tem o sertão, comunidades ribeirinhas, caiçaras, pescadores, povos da floresta.... mas São Paulo mostra que a desigualdade está aqui, latente e tangível à minha realidade hoje", explica.

Democratizar o conhecimento

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Midria nasceu e morou até a adolescência no extremo da zona leste de São Paulo, no bairro Recanto Verde do Sol.
Imagem: Reprodução/Instagram

A poesia de Midria é o reflexo dessa vivência, do seu entendimento como mulher negra, após a transição capilar, na adolescência, e os aprendizados na faculdade como cientista social. E é repleta de dados acadêmicos nas entrelinhas. "Minha trajetória como poeta é atravessada pela minha história como estudante de ciências sociais. Desde o primeiro slam do qual eu participei, sou a pessoa que está estudando ciências sociais e acessando varias teorias na academia que embasam essa escrita. É a maneira como eu vou entender várias coisas da minha vida".

Ela afirma que tem vários tipos de poesia: aquelas que se guarda para si mesma, para colocar pensamentos em ordem; aquelas que mostra para algumas pessoas; aquelas que exibe em saraus, mais intimistas; e aquelas feitas para grandes eventos de slam, que ocorrem em locais públicos, como terminais de ônibus e praças.

"Fico feliz quando as coisas que escrevo ecoam nas pessoas. Vale a pena escrever sobre algo que incomoda ou afeta positivamente e colocar nossos escritos no mundo, porque tem muita gente que pode se inspirar por eles. Eu mesma me sinto inspirada dentro do slam ou nos saraus. Há muito aprendizado coletivo quando a gente se escuta", diz.

A poesia, segundo ela, é um jeito de falar sobre as coisas que aprende na faculdade, que são inacessíveis. A ideia é trazer esses temas para um lugar público de debate com dados. "O slam é como o remédio azedo que você toma para ficar bem. Não é palatável, mas é um espaço necessário", diz.

A transição da poesia do papel para performance foi rápida: na segunda vez que esteve em um sarau já achou que tinha o que dizer. Não queria deixar seus escritos na gaveta, queria trocar. Um tempo depois, veio o primeiro slam. Ali entendeu que não precisa ter livro publicado para se considerar escritora.

"Eu não me via sendo a pessoa que grita para chamar a atenção, então quis trazer o humor, cantar. Queria que minha avó entendesse meus poemas sem pensar que eu estava xingando todo mundo", ela conta, antes de completar: "E é importante xingar todo mundo, não deslegitimo quem faz isso, só não sou eu".

Entre as mulheres pretas que são referência para ela estão a cantora Gabi Nyarai, as poetas Luz Ribeiro e Bell Puã, que já ganharam o Slam Br, e Mel Duarte, Luiza Romão, Jessica Campos e Tawane Theodoro, todas que vieram das batalhas e ganharam projeção em espaços literários como a Flip ou o prêmio Jabuti. Entre os homens, faz questão de citar o amigo Igor Chico, que também veio da periferia de São Paulo e cursou história na USP.

Presentes de maneira atemporal

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Midria, autora de "A Menina que Nasceu sem Cor", fala sobre ações antirracistas para incorporar no cotidiano
Imagem: TodaTeen

Midria cita a poeta Carolina Maria de Jesus em vários momentos da conversa com Ecoa. "É importante olhar para ela e entender que estamos de maneira atemporal presentes com nossas palavras, com nossas escritas, produzindo outras formas de existência e de afetação no mundo", diz.

A consciência da urgência veio ainda no colégio, quando percebeu a disparidade entre o que lia e o que acontecia ao seu redor. "A gente está morrendo, tem gente com fome. Carolina Maria de Jesus já falava disso. Quando fiz a transição capilar sofri vários episódios de violência em casa e na rua e quis escrever sobre isso. Também é poesia falar sobre o que está próximo de mim".

Midria acha que se Carolina estivesse viva hoje, seria aquela mulher respeitada nos saraus. "Todos parariam para escutar: agora Carolina vai mandar os poemas dela. Ela tinha voz, mas não tinha plataforma para ter escuta e, mesmo quando publicou livros por grandes editoras, não teve o reconhecimento que deveria ter".

Menina sem cor

O poema que calou a praça em Paraty na Flip trata do colorismo. A poeta afirma nos versos que não era considerada negra e sim chamada de parda, o que deixava sua consciência racial bamba.

"O colorismo é um tema gigante, compreende muitas questões, muitas problemáticas. É o mecanismo do racismo relacionado a eugenia para apagar as raízes. Acho importante falar desse tema espinhoso porque há muitas pessoas que não se consideram negras, os negros de pele clara. Quero que essas pessoas possam se ver ali e se reconstruir. Quantas meninas negras que alisavam o cabelo e não se consideravam negras passam a entender isso?", pergunta.

Ela se formou na USP em 2022, e lá deixou sua marca no Slam Usperifa, que organizou com dois amigos: "O Usperifa é um lugar de cultura, de estudantes negros, indígenas... pessoas que estão lá para ouvir, aprender e se colocar em lugar de escuta. Racismo não é só história das pessoas pretas, também é história das pessoas brancas que se eximem".

Na Flip, Midria lançou o livro "Cartas de amor para mulheres negras". Vem uma nova obra em 2023, pela editora Record. Nos planos também está continuar falando com alunos e professores de escolas públicas sobre questões de gênero, direito à cidade, e cultura periféricas, e fomentar saraus e oficinas. "Só falta tempo para fazer tudo isso".

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