Topo

Pessoas

'Havia uma política de ódio na gestão anterior. Precisamos acabar com isso'

Symmy Larratt, secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. - Divulgação MDHC
Symmy Larratt, secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Imagem: Divulgação MDHC

Mari Rodrigues e Noah Scheffel

Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) e Porto Alegre (RS)

29/01/2023 06h00

Quando Silvio Almeida, agora ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, indicou o nome da ativista travesti Symmy Larrat para a inédita Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, uma porta se abriu para as pessoas trans dentro do governo.

Nascida em Cametá, no interior do Pará, Symmy foi coordenadora do programa Transcidadania durante a gestão de Fernando Haddad como prefeito de São Paulo e entre 2015 e 2016, durante o governo de Dilma Rousseff, coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT da então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Com sua experiência de vida, de militância e de fazer público, Symmy tem as credenciais para trazer propostas de políticas públicas para a população LGBTQIA+, e em especial para a população trans, tão marginalizada.

Hoje, no dia Nacional da Visibilidade Trans, Ecoa bate um papo com Symmy para saber mais sobre as ações práticas e perspectivas de futuro da nova secretaria. A entrevista, feita por videoconferência, mostra uma Symmy humana, porém decidida em deixar um legado na gestão pública.

Symmy Larratt, secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania - Divulgação MDHC - Divulgação MDHC
Symmy Larratt, secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania
Imagem: Divulgação MDHC

Ecoa: O que mais te orgulha da sua trajetória até aqui?

Symmy Larrat: Depende. No campo pessoal, o meu maior orgulho foi de ter me reconciliado com a minha família, para além da simples tolerância. No campo profissional, me orgulho da implantação do Transcidadania em São Paulo.

Ecoa: Assim como você, também sou nortista. Como você vê a questão LGBTQIA+ na Amazônia, com esses contextos tão diversos?

Symmy: Acredito que qualquer política pública precisa ser feita pensando no lugar de onde as pessoas vêm. Sofremos uma migração forçada: saímos da floresta, do campo, vamos para uma cidade maiorzinha, para uma capital, e de lá para o eixo Sul-Sudeste, porque queremos viver como somos. Senti isso na pele sendo nortista.

A gente sai, fica o tempo inteiro buscando um lugar onde a violência do conservadorismo não nos atinja mais.

A ausência de acesso à informação permite o avanço do conservadorismo na Amazônia. Ser quem você é na Amazônia, especialmente nessa questão do gênero e da sexualidade, é muito difícil, e obriga as pessoas a migrar.

Não há política pública se ela não for aplicável na Amazônia, porque é muito fácil fazer um teste nas grandes capitais e no final a gente não consegue resolver essas migrações forçadas.

Ecoa: Que potência você vê nas pessoas trans para que elas de fato consigam transformar os espaços que elas ocupam na sociedade?

Symmy: A própria transgeneridade é uma magia que não se tem em outro contexto. O poder patriarcal existe há milênios e diz que a existência só pode ser daquele jeito, e começa toda uma história de opressão que é mais difícil de vencer.

A nossa existência, calada, mostra que esta estrutura de poder é errada; nossa existência põe em xeque muita coisa. Quando a gente aprende a se conhecer, tem essa potência de lidar com as coisas de uma maneira diferente. Passar por lugares como a prostituição forçada nos torna mais ágeis, porque a nossa vida é assim, achar espaço para sobreviver.

Symmy Larratt, secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Symmy Larrat, quando ainda coordenadora da Casa Neon Cunha, localizada em São Bernardo do Campo/SP
Imagem: Mariana Pekin/UOL

Ecoa: Qual é a importância para as pessoas trans de uma secretaria específica para discutir a defesa e as políticas públicas da população LGBTQIA+?

Symmy: Estamos excluídas de tudo e agora queremos nos sentar à mesa. Ter uma secretaria nos coloca num lugar de acesso e de pactuação que nunca tivemos na política pública. Queremos nos sentar à mesa com o Estado para decidir e estamos chegando lá. Isto vai resolver nossa situação? Não. Porque estamos em um lugar específico, mas as pessoas trans precisam chegar em outras posições de poder.

Ecoa: Quais são os grandes desafios que a secretaria vai precisar enfrentar em curto e médio prazo?

Symmy: Há duas questões emergenciais. O primeiro desafio é compor a secretaria. Temos um bom ministro, uma galera maravilhosa que está com a gente. Mas compor a secretaria dentro dessa ruptura do ódio para a possibilidade. Sobre a pauta LGBTQIA+, é importante restituir a participação popular.

Ecoa: Por meio dos conselhos?

Symmy: Sim. A outra questão é fazer com que o governo faça tudo que ele se isentou de fazer para garantir nossas conquistas, pegar as decisões do STF e fazer acontecer por meio da política pública. Havia uma política muito cruel de ódio na gestão anterior: institucionalizaram o esvaziamento da política e o impedimento do alcance das conquistas. Portanto, precisamos acabar com isso e criar pontes para que a pessoa acesse as conquistas.

Symmy Larratt, secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. - Divulgação MDHC - Divulgação MDHC
Symmy Larratt, secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Imagem: Divulgação MDHC

Ecoa: E quanto às transmasculinidades, não binaridades e pessoas intersexo, como isso vai ser trabalhado na secretaria?

Symmy: Estamos num trabalho de escuta de todas as demandas. As políticas públicas precisam trazer todas as especificidades LGBTQIA+. Se precisarmos falar de registro civil ou de saúde, precisamos trazer essas pautas. Não seremos uma secretaria de letrinha e sim de assuntos gerais. As coordenações deverão trazer todas as pautas.

Teremos que trazer essas especificidades no bojo da política pública. Não faz sentido fazer o que a cisgeneridade fez conosco: deixar para trás determinadas demandas para conseguir outras conquistas. Isso norteia o nosso fazer.

Recebi várias demandas das pautas intersexo e não-binária, especialmente nos campos do registro civil e da saúde. No momento, estamos identificando as emergências para tratá-las nesse primeiro momento, considerando o desmonte que sofremos no país.

Depois disso, vamos criar uma dinâmica do fazer da política pública, para que ela seja mais perene. Nós já vimos isso: as conquistas podem desaparecer numa canetada. A gente precisa, nesta gestão, deixar coisas mais alicerçadas, e isto requer paciência para o tempo da política.

Ecoa: Muitas pessoas trans, excluídas do mercado de trabalho, acabam encontrando na prostituição a única forma de sustento. Como a secretaria vai agir para mudar essa realidade?

Symmy: A gente precisa atuar onde está o problema. O próprio Transcidadania deu a dica: empregabilidade, educação e renda são importantíssimas para fazer com que a população trans não seja jogada para uma realidade específica.

Mari - É o momento para pensar em cotas trans?

Symmy: É o momento de pensar tudo, de pensar em ousar. Precisamos entender o que é emergencial e o que construímos com o tempo. Quando construímos o processo transexualizador do SUS, pactuamos com todos os conselhos da saúde, e ele está até hoje. Essas pautas que têm maior possibilidade de reação negativa precisam ser pactuadas em várias instâncias. Mas agora é o momento de levantar tudo; não dá para esperar ter dinheiro para fazer uma conferência. Precisamos pensar essas ousadias de forma que se tornem políticas perenes.

Symmy Larrat, coordenadora da Casa Neon Cunha, localizada em São Bernardo do Campo/SP. - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Symmy Larrat, coordenadora da Casa Neon Cunha, localizada em São Bernardo do Campo/SP.
Imagem: Mariana Pekin/UOL

E sobre o projeto de lei de identidade de gênero, como apresentá-lo considerando a atual configuração do Congresso?

Symmy: Essa é uma tarefa do Legislativo. Estamos fazendo um levantamento dos projetos em tramitação e do que é prioridade para o governo. Agora temos um governo que não vai se opor a certas pautas. Mas o Legislativo é outro poder. Da nossa parte, vamos nos posicionar na relação com o Legislativo para garantir que o que vem de lá seja sancionado aqui. O Congresso não melhorou, mas, enquanto governo, precisaremos ter uma posição de independência. Quanto mais participação social tivermos, maior é a influência nos demais poderes.

Ecoa: E olhando para o futuro, o que você gostaria que a secretaria tenha garantido para a população LGBTQIA+? Que legado você quer deixar?

Symmy: Se eu falar algo específico, você vai me cobrar daqui a quatro anos [risos]. O que eu quero entregar é uma política pública que dificilmente seja apagada. Mais que um programa específico, quero entregar uma política.

A população LGBTQIA+ ainda não tem isso. Se eu perguntar para um gestor qual é a política LGBTQIA+, ele não vai saber responder qual é, porque ela não existe. E o que não está escrito na gestão pública não existe. Quero entregar uma política que dê conta da existência das pessoas LGBTQIA+ para o poder público.

Pessoas