'Havia uma política de ódio na gestão anterior. Precisamos acabar com isso'
Quando Silvio Almeida, agora ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, indicou o nome da ativista travesti Symmy Larrat para a inédita Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, uma porta se abriu para as pessoas trans dentro do governo.
Nascida em Cametá, no interior do Pará, Symmy foi coordenadora do programa Transcidadania durante a gestão de Fernando Haddad como prefeito de São Paulo e entre 2015 e 2016, durante o governo de Dilma Rousseff, coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT da então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Com sua experiência de vida, de militância e de fazer público, Symmy tem as credenciais para trazer propostas de políticas públicas para a população LGBTQIA+, e em especial para a população trans, tão marginalizada.
Hoje, no dia Nacional da Visibilidade Trans, Ecoa bate um papo com Symmy para saber mais sobre as ações práticas e perspectivas de futuro da nova secretaria. A entrevista, feita por videoconferência, mostra uma Symmy humana, porém decidida em deixar um legado na gestão pública.
Ecoa: O que mais te orgulha da sua trajetória até aqui?
Symmy Larrat: Depende. No campo pessoal, o meu maior orgulho foi de ter me reconciliado com a minha família, para além da simples tolerância. No campo profissional, me orgulho da implantação do Transcidadania em São Paulo.
Ecoa: Assim como você, também sou nortista. Como você vê a questão LGBTQIA+ na Amazônia, com esses contextos tão diversos?
Symmy: Acredito que qualquer política pública precisa ser feita pensando no lugar de onde as pessoas vêm. Sofremos uma migração forçada: saímos da floresta, do campo, vamos para uma cidade maiorzinha, para uma capital, e de lá para o eixo Sul-Sudeste, porque queremos viver como somos. Senti isso na pele sendo nortista.
A gente sai, fica o tempo inteiro buscando um lugar onde a violência do conservadorismo não nos atinja mais.
A ausência de acesso à informação permite o avanço do conservadorismo na Amazônia. Ser quem você é na Amazônia, especialmente nessa questão do gênero e da sexualidade, é muito difícil, e obriga as pessoas a migrar.
Não há política pública se ela não for aplicável na Amazônia, porque é muito fácil fazer um teste nas grandes capitais e no final a gente não consegue resolver essas migrações forçadas.
Ecoa: Que potência você vê nas pessoas trans para que elas de fato consigam transformar os espaços que elas ocupam na sociedade?
Symmy: A própria transgeneridade é uma magia que não se tem em outro contexto. O poder patriarcal existe há milênios e diz que a existência só pode ser daquele jeito, e começa toda uma história de opressão que é mais difícil de vencer.
A nossa existência, calada, mostra que esta estrutura de poder é errada; nossa existência põe em xeque muita coisa. Quando a gente aprende a se conhecer, tem essa potência de lidar com as coisas de uma maneira diferente. Passar por lugares como a prostituição forçada nos torna mais ágeis, porque a nossa vida é assim, achar espaço para sobreviver.
Ecoa: Qual é a importância para as pessoas trans de uma secretaria específica para discutir a defesa e as políticas públicas da população LGBTQIA+?
Symmy: Estamos excluídas de tudo e agora queremos nos sentar à mesa. Ter uma secretaria nos coloca num lugar de acesso e de pactuação que nunca tivemos na política pública. Queremos nos sentar à mesa com o Estado para decidir e estamos chegando lá. Isto vai resolver nossa situação? Não. Porque estamos em um lugar específico, mas as pessoas trans precisam chegar em outras posições de poder.
Ecoa: Quais são os grandes desafios que a secretaria vai precisar enfrentar em curto e médio prazo?
Symmy: Há duas questões emergenciais. O primeiro desafio é compor a secretaria. Temos um bom ministro, uma galera maravilhosa que está com a gente. Mas compor a secretaria dentro dessa ruptura do ódio para a possibilidade. Sobre a pauta LGBTQIA+, é importante restituir a participação popular.
Ecoa: Por meio dos conselhos?
Symmy: Sim. A outra questão é fazer com que o governo faça tudo que ele se isentou de fazer para garantir nossas conquistas, pegar as decisões do STF e fazer acontecer por meio da política pública. Havia uma política muito cruel de ódio na gestão anterior: institucionalizaram o esvaziamento da política e o impedimento do alcance das conquistas. Portanto, precisamos acabar com isso e criar pontes para que a pessoa acesse as conquistas.
Ecoa: E quanto às transmasculinidades, não binaridades e pessoas intersexo, como isso vai ser trabalhado na secretaria?
Symmy: Estamos num trabalho de escuta de todas as demandas. As políticas públicas precisam trazer todas as especificidades LGBTQIA+. Se precisarmos falar de registro civil ou de saúde, precisamos trazer essas pautas. Não seremos uma secretaria de letrinha e sim de assuntos gerais. As coordenações deverão trazer todas as pautas.
Teremos que trazer essas especificidades no bojo da política pública. Não faz sentido fazer o que a cisgeneridade fez conosco: deixar para trás determinadas demandas para conseguir outras conquistas. Isso norteia o nosso fazer.
Recebi várias demandas das pautas intersexo e não-binária, especialmente nos campos do registro civil e da saúde. No momento, estamos identificando as emergências para tratá-las nesse primeiro momento, considerando o desmonte que sofremos no país.
Depois disso, vamos criar uma dinâmica do fazer da política pública, para que ela seja mais perene. Nós já vimos isso: as conquistas podem desaparecer numa canetada. A gente precisa, nesta gestão, deixar coisas mais alicerçadas, e isto requer paciência para o tempo da política.
Ecoa: Muitas pessoas trans, excluídas do mercado de trabalho, acabam encontrando na prostituição a única forma de sustento. Como a secretaria vai agir para mudar essa realidade?
Symmy: A gente precisa atuar onde está o problema. O próprio Transcidadania deu a dica: empregabilidade, educação e renda são importantíssimas para fazer com que a população trans não seja jogada para uma realidade específica.
Mari - É o momento para pensar em cotas trans?
Symmy: É o momento de pensar tudo, de pensar em ousar. Precisamos entender o que é emergencial e o que construímos com o tempo. Quando construímos o processo transexualizador do SUS, pactuamos com todos os conselhos da saúde, e ele está até hoje. Essas pautas que têm maior possibilidade de reação negativa precisam ser pactuadas em várias instâncias. Mas agora é o momento de levantar tudo; não dá para esperar ter dinheiro para fazer uma conferência. Precisamos pensar essas ousadias de forma que se tornem políticas perenes.
E sobre o projeto de lei de identidade de gênero, como apresentá-lo considerando a atual configuração do Congresso?
Symmy: Essa é uma tarefa do Legislativo. Estamos fazendo um levantamento dos projetos em tramitação e do que é prioridade para o governo. Agora temos um governo que não vai se opor a certas pautas. Mas o Legislativo é outro poder. Da nossa parte, vamos nos posicionar na relação com o Legislativo para garantir que o que vem de lá seja sancionado aqui. O Congresso não melhorou, mas, enquanto governo, precisaremos ter uma posição de independência. Quanto mais participação social tivermos, maior é a influência nos demais poderes.
Ecoa: E olhando para o futuro, o que você gostaria que a secretaria tenha garantido para a população LGBTQIA+? Que legado você quer deixar?
Symmy: Se eu falar algo específico, você vai me cobrar daqui a quatro anos [risos]. O que eu quero entregar é uma política pública que dificilmente seja apagada. Mais que um programa específico, quero entregar uma política.
A população LGBTQIA+ ainda não tem isso. Se eu perguntar para um gestor qual é a política LGBTQIA+, ele não vai saber responder qual é, porque ela não existe. E o que não está escrito na gestão pública não existe. Quero entregar uma política que dê conta da existência das pessoas LGBTQIA+ para o poder público.
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